terça-feira, dezembro 01, 2015

Quando o aluno é quem ensina


Desde moleque eu ouço por aí, nas ruas, nos mercados, padarias e botecos, nas farmácias e nos pontos de ônibus, no JN e na Rádio Bandeirantes, nas capas da Veja e da FSP: o problema desse país é que não se pensa em educação.

Não tem nem um ano tinha gente na rua e nas sacadas batendo panela, pedindo cabeças, gritando que nesse país não existe educação.

Tiravam sarro do governo federal - e com razão - e de seu slogan publicitário "Brasil, Pátria Educadora".

Mas silenciaram diante do governo estadual, que anunciou cortes e uma "reorganização" feita de cima para baixo, sem consultar ninguém:  "problema de quem estuda em escola estadual". Ou como disse a distinta manifestante "contra tudo que está aí" que não me sai da cabeça: "a periferia que resolva os problemas da periferia".

Deu-se que meninos e meninas resolvem tomar a bandeira para si, assumindo essa responsa de gente grande de brigar pelo próprio direito.

Ocupam escolas. Cuidam do patrimônio como não se cuidava havia meses, anos. Limpam banheiros, recuperam salas, pintam paredes. Tratam a escola como suas casas e mandam o recado: vamos cuidar do que é nosso, e daqui ninguém tira a gente enquanto a gente não for tratado com respeito.

No rolê cívico, recusaram o apoio (interesseiro) das velhas entidades (UNE, UBES, UMES).

Essa briga é deles, não é das bandeiras velhas e encardidas.

Mas o governo decidiu que assim não pode ser.

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O governo do estado de São Paulo declarou guerra. Tem gravação do secretário de educação tratando meninos e meninas como inimigos, dizendo, como quem diz um palavrão, que as manifestações são políticas (como se brigar por educação não fosse mesmo um ato político, e como se isso não fosse justo e justificado, mas o ponto não é esse).

No dia seguinte, escolas que estiveram durante toda a manifestação cercadas de PM rosnando pra quem estivesse dentro e pra quem passasse do lado de fora, são invadidas por vândalos que depredam salas de aula, bibliotecas (quando existem) e outros equipamentos.

A imprensa "imparcial" insinua - em jornais, rádios e TV -  que os alunos são baderneiros.

Pais de alunos, diretores, padres, são convocados pra tirar a molecada das escolas.

Pais são colocados contra seus filhos. E engolem o golpe de um governador antidemocrático, fascista, violento, para quem nada mais importa senão a sua própria noção subjetiva de "ordem".

Mas seus filhos e filhas não arredam o pé. Herois e Heroínas, esses meninos e essas meninas nos ensinam uma lição esquecida.

Eles apontaram o caminho: resistamos, reivindiquemos nosso lugar, batamos o pé, derrubemos muros que separam classes e gente e ruas e calçadas e espaços públicos.

Ao povo o que é do povo, na boa, na coletividade, na humildade.

Mas com garra.

Com garra.


quarta-feira, agosto 05, 2015

Risada (Um argumento para roteiro do Porta dos Fundos)


É um restaurante. Fica na Vila Madalena. Serve comidas bacanas. Tem gente legal.

Em uma mesa, um casal conversa enquanto o garçom monta a mesa ao lado para receber um pequeno grupo, de quatro a seis pessoas. O casal já se sente um pouco tenso porque grupos de quatro a seis pessoas tendem a ser ruidosos. Mas é a Vila Madalena. É um restaurante que serve comidas bacanas. Que tem gente legal.

O grupo se aninha. Tudo gente boa. A conversa rola. Gente animada. Risadas. Mas tem uma risada...

O homem franze o cenho com o olhar perdido. A mulher olha para o homem. "Que foi?!". Homem cochicha

- Essa risada...
- Que que tem?
- Presta atenção...

É uma daquelas risadas esquisitas. Talvez seja a risada mais esquisita que qualquer um já ouviu.

- Caramba! - é a mulher que diz isso.
- É - comenta o homem com o cenho franzido. E procurando o garçom.

O garçom se aproxima. "Pois não?". E o homem faz menção de começar a explicar, quando uma nova risada reverbera no ambiente. O homem só ergue as duas mãos pateticamente, como que dizendo que seu caso é óbvio "não entendeu?!". Claro que o garçom entente.

Com as duas mãos espalmadas na direção do homem, o garçom pede calma e se retira. O homem olha para a mulher erguendo as sobrancelhas em sinal de dúvida. A mulher não esboça nenhuma emoção aparente enquanto pisca duas vezes ao som da risada. Aquela risada.

O homem vê o garçom saindo da cozinha acompanhado de um outro homem. O garçom cochicha no ouvido do outro homem, que olha para o primeiro homem com piedade. Ao mesmo tempo, a risada, aquela, ecoa mais uma vez. O outro homem olha para o espaço. E franze o cenho. E ergue a mão direita para o homem como quem diz "deixa comigo".

Ele se dirige à mesa onde nascem as risadas e pede licença. Se apresenta:

- Boa noite. Meu nome é Alfredo e eu sou um consultor. Posso me sentar?

A mesa permite, pela estranheza que um consultor causa em um bar. Simpaticíssimo, Alfredo explica que tipo de consultoria ele presta:

- Bom, gente. Eu sou um consultor de risadas. E a sua (aponta o objeto de discórdia) simplesmente não funciona em lugares públicos...

A pessoa objeto de discórdia não entende bem o que está acontecendo:

- Desculpa...Num...tou...entendendo (à moda Porta dos Fundos)
- Sua risada é muito FEIA!
- Como assim feia?!
- Olha - o outro homem puxa um gravador e mostra a risada para a pessoa - percebeu?

Momento tenso: a pessoa não acha que sua risada é feia. E desafia o consultor:

- Não acho não, né gente?!

Os amigos se dividem entre defensores inseguros e defensores contrariados: "é...ééé...poizéé...". O que causa espanto na pessoa:

O outro homem:

- É, então. Você tem uma risada muito feia...

Pessoa incrédula, mas silenciosa

- Olha, sua risada é uma bosta, mas pode melhorar. Pra começar, vamos treinar respiração... pra tirar esse ahuuuuuuuuuu, entre cada risada.

Paciente treina.

- Agora vamos treinar vogais. A vogal é importante pra dar ênfase na risada. Por exemplo, se é uma risada mais leve, um rárárá funciona. Agora, se é um evento mais sério, é melhor usar o I, hihihi. Mas se você está entre amigos, no particular, ou mesmo durante um orgasmo, e dá pra escrachar mesmo você pode usar o "o". Vamos tentar? Rôô Rô Rõ

A essa altura todo o restaurante está em volta do consultor, treinando sua própria risada.

Enquanto isso, o consultor vira para a câmera, quebrando a quarta parede:

- Gente, risada é coisa séria. Não dá pra rir de qualquer coisa. Tipo, cor da pele, imigrante ilegal, orientação sexual... Não dá pra rir. Agora (a partir daqui o texto é acompanhado de claques tipo Os Trapalhões), meu salário, o vizinho que acha que escreve e que pensa que todo mundo é comunista ou o outro que pensa que "bom mesmo foi a época dos militares"... isso dá pra rir sim. Libera!






quarta-feira, junho 24, 2015

Bexigas


 - Mas rapaaaaz, como você enche bexiga depressa! (para os não paulistas: bexiga = balão de festa)
- E olha que eu sou ex-fumante...
- Não brinca!

Era séria a coisa: rapidamente as bexigas iam se amontoando no chão. Ele bem que sentiu que a cada fôlego que ele tomava sem tirar a bexiga da boca, algo voltava para sua garganta. Não importava. Tinha plateia.

No dia seguinte à festa, acordou com uma tosse chata, dessas que fumante tem ao sair da cama. "Coisa estranha", pensou, mas não deu bola. Saiu de casa e subiu a ladeira até a estação de metrô. Foi um custo. O fôlego acabou no meio da subida. Teve que parar. Algo estava errado.

Conseguiu um encaixe para aquele dia mesmo num pneumologista indicado por um colega do escritório. Quando chegou no consultório tossia muito. Uma tosse seca, que arranhava a garganta. Quase não conseguiu falar com o médico quando ele o chamou:

- cof! COOOOOF! Sou eu.. coooof!
- Fumante?
- Ex...ooooooofff! cof!
- Tome um pouco d´água - sorveu o líquido de uma vez.
- Quando começou essa tosse?
- Na segunda-feira. Domingo eu enchi umas bexigas, e...
- Bexigas, você disse?! Lembra a marca?
- N-não... Era pra lembrar?
- Isso explica o... Veja o senhor mesmo.

O médico pegou um espelhinho e entregou para o homem, que olhava incrédulo para a própria imagem.

- Meu nariz...tá vermelho e arredondado.
- O senhor está nos primeiros estágios de... PALHACITE!
- Pa... Que diabos é isso, doutor?!
- Eu pensei que essa marca de bexigas tinha sido banida há muitos anos...

De olhos arregalados, o homem procurava entender. Olhou para o espelho novamente. Seu cabelo estava ficando laranja e sua pele estava ficando branca.

Começou a gargalhar.


quinta-feira, junho 18, 2015

Um resumo das coisas até aqui...(editado para quem foi adolescente nos anos 1990 e para quem é adolescente hoje e para durar 10 anos)


(importante: ainda que extremamente pessoal, e ainda que eu fale de gente que me tocou o coração de forma profunda, não vou citar nomes nessa crônica. quem está aqui sabe que está aqui. quem não está aqui, certamente está em outro capítulo. um beijo para cada um de todos nós.)



Era 1991 e meu pai chegou em casa com a notícia: fora convidado para trabalhar em um hotel em Porto Alegre.

Morávamos em Ilhéus tinha 9 meses, e a primeira pergunta da minha mãe foi:

- Lá tem praia?

Não tinha. Lá tem rio - que não é bem um rio, mas aí é outra história.

Eu não esperava muita coisa da mudança. Você não espera muita coisa quando tem 12 anos. Especialmente quando você tinha acabado de sair de São Paulo para morar em outra cidade e em outro estado. Aquilo era só uma continuidade na mudança.
Meu pai foi antes, e alugou um apartamento na Ramiro Barcelos - em frente ao Hospital de Clínicas -literalmente no escuro: era noite e a luz estava cortada. O apê precisava de reformas, então ficou acertado que ficaríamos um tempo no hotel.
Chegamos em outubro e fazia um frio de lascar, de inverno tardio, de "renguear cusco", como me explicou um amigo que apontou um cachorrinho tiritando de frio na rua, num inverno posterior:

- Tá vendo o cusco? Tá rengueando de frio.

Eu estava terminando o primeiro grau, minha irmã estava na antiga quinta-série, e meus pais tinham um problema, resolvido pelo IPA, que nos acolheu mesmo sendo fim de ano.

Foi meu primeiro contato de fato com meninos e meninas riograndenses. Não conto as primeiras tardes de domingo vendo a juventude tomando milk-shake no Rib´s , porque eu era muito novo para me enturmar.

Logo depois de nos mudarmos para a Ramiro, um primo de São Paulo veio nos visitar. Saímos um dia de casa no meio da tarde, atrás de um lugar que servisse um x-burguer.

1. A gastronomia rio-grandense.



Encontramos um trailer que servia lanches. Depois de consultar um cardápio em que todos os lanches incluíam "salada, ervilha, milho e ovo" pedimos um x-burguer: pão, hambúrguer, queijo:

- Mas sem ovo?
- Sem.
- Sem ervilha e sem milho?
- Sem ervilha e sem milho.
- SEM MAIONESE, GURIS?
...

2.
Em 1992 eu estava matriculado no primeiro ano do curso técnico de contabilidade do Colégio Protásio Alves. Não pergunte.

Foi a época em que o Nirvana estourou pra valer no Brasil. Junto com Soundgarden, Pearl Jam e outras grandes bandas de Seattle. Eu ouvia Depeche Mode. Todo mundo usava camisas de flanela xadrez. Eu usava jaqueta de couro e coturno. Comprava meus vinis no Brique da Redenção.

Na mesma Redenção fica a Igreja do Santíssimo Sacramento e Santa Terezinha. Num dia passei pela porta da igreja e vi um grupo de guris e gurias reunidos, tocando violão. Me juntei a eles e não me senti mais sozinho.

Em 1993 eu conheci mais gente que gostava do Depeche Mode, do New Order, do Pet Shop Boys. Nós e mais um monte de gente começamos a organizar festas para as quais vinha gente da cidade inteira. Uma delas foi especial porque foi onde eu beijei uma guria pela primeira vez. Não sei se ainda era 1993 ou se já era 1994, mas sei que eu já era conhecido como "Paulista", e andava pra cima e pra baixo com um amigo que também gostava de Monty Python e dos filmes com o Leslie Nielsen. Íamos montar um grupo de teatro e dominar o mundo.

3.
Em 1994 eu disse para o meu pai que queria arrumar um emprego:

- Eu acho que vai ser legal eu ter o meu dinheiro. Comprar meus discos. Minhas revistas.
- Vou ver se sei de alguma coisa.

Comecei a trabalhar em um quiosque no Quinta Avenida Center, na 24 de Outubro. O quiosque vendia cervejas do mundo todo, em um tempo em que quase ninguém bebia cervejas do mundo todo.

Na frente do quiosque tinha uma cafeteria, e a filha da dona era uma graça. E a gente ficava se olhando, mas nada acontecia nem aconteceu. Atrás do quiosque tinha um lugar que fazia um cachorro-quente muito bom, e matava minha fome quando tinha que trabalhar eventualmente aos sábados.

Eu passava as tardes nesse quiosque. Como eu ficava sozinho podia receber amigos, que se revezavam nas visitas e nos papos... Me sentia o Carlos Alberto da Nóbrega, em A Praça e Nossa. O quiosque era meu banco de praça.

Foi lá que eu conheci os caras da primeira e única banda da qual fiz parte.

Era uma banda de música industrial, inspirada no Neubauten.

Ensaiávamos no bairro São Geraldo - também industrial - aos sábados. Uma vez, ensaiamos na porta de uma retífica que - não sabíamos - estava aberta. Empolgados com o ensaio, não percebemos que fomos cercados de mecânicos curiosos com o barulho. Quando paramos, fomos aplaudidos pelos mecânicos, que estavam saindo do trabalho.

4.
Em 1994 o Brasil ganhou a Copa do Mundo depois de um tempão. Nós morávamos num apartamento na Felipe Camarão e eu convidei um monte de gente para ver a final em casa. Muitos não tiveram estômago para acompanhar a cobrança de pênaltis que deu o título. Na verdade eu acho que só um cara acompanhou. Só olhamos quando ele gritou:

- Acabou!

Nos juntamos à multidão na Avenida Goethe. Não lembro a que horas eu cheguei em casa.

5.
1995 foi o ano da minha primeira cerveja com meu pai. Foi num apartamento no número 535 da Felipe Camarão.

Nesse ano eu fui trabalhar em uma videolocadora, na esquina da Vasco da Gama com a Fernandes Vieira. Os donos da locadora tinham um negócio paralelo de venda de produtos da AmWay, e não gostavam que os funcionários se relacionassem fora do expediente, mas a gente se relacionava mesmo assim.

Às sextas a gente se encontrava na esquina de baixo e ia para o bar mais próximo.

Depois da locadora eu fui trabalhar na agência de turismo de um amigo meu, do lado da igreja, que ficava em alguma rua ali do Bom Fim a qual não me recordo.

6.
Em 1996 meus pais compraram uma cafeteria e minha irmã e eu fomos ajudar a tocar o negócio. Eu sonhava em estar fora dali e estudar jornalismo, estourar, ser o próximo... Próximo quem? Eu ia ser o cara mais fodão do mundo, tocando na banda mais fodona do mundo e escrevendo os textos mais fodões do mundo. Enquanto eu sonhava, tocava os sons mais malucos que já tocaram em uma cafeteria. Também escrevia coisas malucas na placa que ficava do lado de fora da cafeteria. Eu ia ser escritor, não ia?!

7.
Em 1997 eu namorei garota. E comecei a estudar jornalismo na Famecos. Em 1997 eu ia dominar o mundo. E a gente começou a acessar a internet em casa.

8.


Em 1998, um amigo da faculdade começou a estudar HTML pra gente fazer um projeto que ia juntar jornalismo, relações públicas e publicidade num único troço sem nome na internet. Íamos dominar o mundo. Vi pela primeira vez o clipe de Into My Arms do Nick Cave no Set Universitário, quando ia participar de uma oficina de Making Of, e chorei muito.

Neste ano, o hotel onde meu pai trabalhava foi vendido. Neste ano, vendemos a cafeteria.

Em 1999, meus pais voltaram pra SP e eu fiquei em Porto Alegre.

Em 1999 aconteceu uma baita crise e o dólar disparou, quebrando muitos negócios que contavam com a paridade do Real com a moeda estadunidense, turismo incluso.

Eu trabalhava com turismo. E só não passei fome por um tiquinho assim. E por causa de amigos muito queridos.

9.
Em meados de 1999 eu não aguentei ficar sozinho em Porto Alegre e voltei pra São Paulo. A primeira coisa que minha mãe me disse quando me viu descendo do ônibus no Tietê foi:

- Meu filho! Como você está magro! Tá tudo bem com você?

Eu não quero dizer "Foi estranho voltar para o bairro onde cresci depois de mais de 10 anos" porque isso não é esteticamente interessante, mas foi estranho voltar para o bairro onde cresci depois de mais de 10 anos.

Naquela época eu fumava, e para passar o tempo enquanto não arrumava um emprego eu fui pintar as grades da casa (um portão na garagem, grades nas janelas, um outro portão nos fundos). Meu cigarro acabou, e não tinha dinheiro em casa. Fumei bitucas do cinzeiro. Jurei que era a última vez que fazia isso. Deu certo, mas isso é outra história.

10.
Fui trabalhar numa agência de turismo na Freguesia do Ó, bem no meio do bairro. Era uma agência que atendia seguradoras, então a gente tinha que trabalhar em esquema de plantão. Eu peguei o plantão na virada de 1999 para 2000. Quis morrer.

Perto dessa agência tinha uma birosca, uma mistura de mercadinho e bar. A gente saia da agência, parava ali para tomar uma cerveja, comer salame com limão, falava um monte de bobagem e voltava pra casa. Num dia daqueles um sujeito apareceu com uma arma, perguntando de um outro sujeito que, por sorte, não estava lá.

11.
Mudamos para a Av. Nossa Senhora da Lapa e eu cansei de trabalhar na agência, especialmente por causa do esquema de plantão, que me obrigava a atender ligações no meio da noite. Numa dessas passei o fim de semana atendendo um sinistro, como as seguradoras chamam suas ocorrências, em que um catarinense quebrou as duas pernas e os dois braços esquiando em Aspen. Achei o fim da picada.

Pela segunda vez graças ao meu pai, arrumei um outro emprego, agora numa empresa de TI. Era 2001.





sexta-feira, junho 12, 2015

12 de junho de 2003 - 12 anos de reforma.


Renata achou de ir morar comigo num kitinette na rua Paim faz 12 anos. Parece que foi em outra vida, mas é a mesma, mas é bem melhor hoje.

Rodamos mais de um milhão de quilômetros, somando realidade e sonho.

Falamos um zilhão de línguas, vivas e mortas. Entendemos muito pouco. E um bocado.

Discutimos tapetes, cortinas, lençóis. Transamos um bocado dos últimos. E usamos toalhas depois de tudo.

Trocamos louças e panelas; vieram e foram jogos de chá. Trocamos sofás mais do que qualquer casal na vida já trocou em tão curto espaço de tempo, mas os sofás ainda vivem, alguns na casa de amigos, outros na casa de amigos de amigos.

Sonhamos filhos, filhotes de bichos. Ainda temos planos para todos eles.

Planos, aliás, temos aos montes.

Ainda agora discutíamos onde ia tal quadro, onde ia tal tapete novo. Tudo isso depois de uma reforma cansativa, como são todas as reformas.

Menin@s, entendam: relacionamento não é nada se não se é capaz de fazer planos.

Se a gente não tivesse a capacidade de fazer planos, tinha desistido na primeira noite naquele kitinette apertado na Rua Paim onde, como a Renata mesmo fala, só existia privacidade fechando a porta do banheiro.

Como é incrível estarmos, 12 anos depois, reformando banheiros.

E fazendo planos.

Te amo, Renata!

quarta-feira, junho 10, 2015

Destoando


O garçom que acabou de começar o turno se aproxima da mesa em que o sujeito está sozinho, bebendo um vinho de boa procedência, trabalhando os talheres em um pedaço gorduroso de pernil.

- Com, licença cavalheiro
- Pois não?
- Sinto muito em informar, mas o senhor está destoando do nosso estabelecimento.
- Como é?!
- É a primeira vez que o senhor vem aqui, não é?
- É sim...
- Logo vi. Por gentileza, dê uma olhada em volta.

O homem olha. Um balcão de fórmica sobre um piso que já foi novo forma um "Ú" no meio do salão. Em uma das extremidades há uma churrasqueira fumegando. Um senhor muito suado maneja espetos com linguiças, nacos de costela e outras carnes que não conseguiu identificar. Ao redor do balcão, mesas - também de fórmica - estão dispostas junto à parede. A maioria é como a dele e comporta quatro pessoas. Estão todas cheias de garrafas e ocupadas por no máximo três pessoas. Todas falam muito alto. As paredes estão semicobertas por um papel de parede antigo, puído, coberto de uma fina camada de pó e gordura, no limite do imperceptível. Na porta, um cachorro vadio olha para dentro, esperando - quem sabe - um osso atirado por uma alma temente. Dada a volta completa, o homem contempla seu prato de pernil adornado por farofa de ovos e vinagrete. Completa o cenário a toalha xadrez com furos de cigarro, um prato de Duralex com um pão, e uma molheira cheia até a metade com um molho de cebola (a outra metade havia sido consumida com um outro pão, ausente, evidentemente). Por fim, o homem contempla o copo de vinho.

E olha de volta para o garçom, que leva os olhos do copo para o homem, e levanta as sobrancelhas, inquisidor.

- E então?
- Leva o vinho. Me traz um Cynar. Dá uma tingida com vermute.
- Muito bem, senhor.

O garçom se afasta, mas ainda ouve o homem gritar:

- Traz também uma Caracú!


quarta-feira, junho 03, 2015

A Reforma: Capítulo 2 - O Pedreiro

Pedreiro merece maiúscula.

Porque o cabra é um dos espécimes mais valentes e versáteis da raça humana.

Tire por exemplo o Son, pedreiro que tem nos servido nessa obra, e cujo epíteto se mantém um mistério.

- De onde tu é, Som? - Ainda não entendi se é Son (de filho em inglês) ou se é Som, o substantivo...
- Sou da Bahia, de perto de Itabuna.
- Mas rapaz, a família de minha mãe é de Itabuna e do sul da Bahia.
- Ah,é?
- É!
- Então tá bom!

Son(m) é um cara muito vivido. Já foi jóquei, desses de montar cavalo.

- Aí eu me cansei daquilo e resolvi montar moto. - Montar, no sentido de cavalgar  - Até já fiz aquele negócio de Globo da Morte.


Isso foi no primeiro dia.

- Som(n)! E aquele negócio de moto? Parou?
- Parou! No dia que um amigo meu morreu, parou. Foi o pai dele que deu pra mim a moto que eu andava.

Son(m) não parou por aí. Dias depois aprendi que ele tinha sido fisioculturista.

- Aquele negócio de modelar o corpo pra competição, né?

A descoberta foi da Renata, que em determinado momento disse para ele que "esse negócio é pesado" e não dava para ele carregar sozinho.

- Consigo. Eu já puxei muito ferro.

Daí veio a história...



sexta-feira, maio 29, 2015

A Reforma: Capítulo MCMXXII - Traz a caçamba, traz a caçamba, que o entulho tá aí...


É assim: obra que gera entulho pede caçamba. E em São Paulo, em todas as ruas, caçambas paradas na calçada te lembram: "contrate caçamba cadastrada",  e eu sempre brinquei com a coincidência da frase gerar a sigla CCC, igual ao Comando de Caça aos Comunistas da época da Ditadura. Estava brincando com fogo e não sabia.

A arquiteta tomou a frente:

- Deixa que eu chamo um pessoal que eu conheço. E eles têm autorização pra trabalhar por aqui.

Em São Paulo, é melhor contratar caçambeiros da região, já que eles conhecem "as manhas" da hora certa de parar, recolher o entulho, etc.

Acertou-se que a caçamba chegaria às 23h de um domingo. A gente só precisava garantir que teria uma vaga para instalar a dita cuja. Em São Paulo, achar uma vaga é coisa complicada, entre outras coisas porque boa parte delas está tomada por caçambas.

Na nossa rua o estacionamento é proibido entre as 16h e as 21h, então tivemos que esperar dar as 21h para conseguir pegar uma vaga. E depois tivemos que esperar até às 23h para a chegada do caminhão com a caçamba e tirar o carro para que o caminhão instalasse a caçamba. Era uma hora da manhã e nada de caminhão. Nem caçamba.



No dia seguinte soubemos que o caçambeiro tinha ficado doente. Em São Paulo, domingo é dia de macarrão junto com um monte de bebida, o que eventualmente provoca sonolência, mal-estar, visão duplicada e, em alguns casos, doença.

Um dos pedreiros ouviu a história:

- Eu tenho um amigo...

Agora uma lição sobre a mecânica do Universo. Cientistas divergem sobre a quantidade de fatores envolvidos, mas há consenso no seguinte: :  quando alguém entreouve uma conversa e se intromete  dizendo que "conhece alguém" que pode resolver a questão envolvida na conversa, existe uma grande chance disso não dar certo

Esse certo alguém é uma pessoa que tem um caminhão, e que poderia encostar na segunda-feira, recolher o entulho e ir embora.

- Tudo limpeza
- Ele tem licença? Não vai jogar esse entulho em qualquer terreno?
- Nãão, ele paga um cara todo mês. Tá tudo certo.
- Marca pra amanhã então, pode ser?
- Vou ligar pra ele é agora.

 Amanhã.

- E aí, cadê teu amigo?
- Tá chegando. Ele vinha me seguindo, mas me perdeu de vista lá na Ponte da Anhanguera. Já já tá aí.

Já já.

- Então...
- Peraí que vou ligar pra ele.

O pedreiro passa esbaforido pela cozinha. A Renata resolve descer pra tirar o carro. Ajudar o cara a ter acesso ao entulho que ocupa nossa vaga. Desço atrás para avisar o pedreiro e vejo... Nada. Nem pedreiro, nem caminhão. Vou até a garagem e a Renata está esperando um sinal, uma senha, algo que diga que ela pode tirar o carro. Mas nada acontece. Voltamos para o apartamento.

E encontramos o pedreiro de volta à lida.

- Mas... Cadê teu amigo?!
- Ah, não sei, ele ligou dizendo que tava aí embaixo mas não tava. Acho que desistiu.
- ...

Uma lição sobre prioridades. Às vezes há um desencontro entre aquilo que você tem como importante e aquilo que as pessoas que entreouviram sua conversa e disseram que "tem um amigo" acham importante.

A arquiteta providenciou uma nova tentativa de entrega da caçamba, dessa vez na noite de quinta-feira para sexta-feira.

Eram umas 19h30. Íamos à padaria. Em São Paulo, as pessoas vão à padaria muitas vezes ao dia.

- Leo, acho que vou tirar o carro e guardar essa vaga.
- Será? Não é melhor esperar?

Perguntamos ao porteiro:

- CET? Não! Tranquilo. Eles não passam não...

Por volta das 20h30 toca o interfone.

- Então... é que a CET tá passando aqui e tá multando todo mundo.

Depois de uma longa conversa com o valoroso agente de trânsito em que discorremos sobre todas as implicações de uma obra na sociedade moderna, em São Paulo, ele sentenciou:

- Olha, eu entendo, de verdade, mas não tem mais jeito, esse aparelho aqui lança a multa direto no sistema lá na central.

Resignados, voltamos para casa, não sem antes passar pelo porteiro, que jurou:

- Juro! Tou aqui faz 3 meses e nunca tinha visto o CET passar!

Às 22h, toca o celular. Era o caçambeiro:

- Tou chegando aí.

Agora vejam vocês; quando você contrata uma caçamba ela fica lá por cinco dias corridos antes que o caminhão venha fazer a remoção. Foi por isso que estranhamos quando o moço disse:

- Me liga amanhã, pra retirar.

Claro que não ligamos. Ligamos pra arquiteta, que concordou conosco: são cinco dias. Ponto final.

No dia em que a caçamba seria recolhida, precisamente às 16h. Toca o interfone.

- Então... a prefeitura tá aí pra recolher a caçamba.
- Mas, mas...
- Poizé, seu Leo. Nunca tinha visto isso...

O fiscal me explicou: o cadastro da empresa estava com problemas. Não tinha jeito.

A prefeitura levou minha caçamba, meu entulho, minhas lágrimas.

Na verdade ainda temos um pouco de entulho aqui na obra. Se você conhecer alguém...






sexta-feira, maio 22, 2015

A Reforma. Capítulo XXII: O Gás




"Quando as coisas faltam, aí que você sente falta" (Confúcio, eu acho).

Sexta passada eu resolvi que não precisava acompanhar a obra. Fiquei longe. Precisamente às 15hs toca meu telefone. Era o Seu Jurandir:

- É que a gente bateu num cano aqui e era de gás.
- !!!!
- Mas tá tudo bem, já fecharam lá embaixo, já.
- E aí? Como fica?
- É...não sei. O cano tá velho. Tá descascando. Melhor tirar.
- Mas eu vou ficar sem gás até quando?
- É... não sei - uma coisa que você não pode é culpar o Jurandir de mentir nos prazos.

Problemas urgentes tem essa propriedade de mexer com nossa autopercepção, fazendo com que tenhamos a impressão equivocada de que nossa mera presença irá resolver o problema.

- Não mexe em nada que eu tou chegando.

Cheguei e, claro, não adiantou nada. Liguei para o síndico, que me acalmou.

- Calma. Tá tudo bem. Já aconteceu antes. O gás tá desligado. Agora precisa achar o ponto onde o gás chega no seu apartamento e cortar o cano que vai pro banheiro. Coisa tranquila. Na segunda a gente vê direitinho.

Segunda-feira o síndico entra em comitiva no apartamento, com um faz-tudo do prédio, o zelador, o porteiro, odaliscas, uma fanfarra... O faz-tudo foi professoral:

- O cano sobe por aqui, atrás da geladeira. Tem que ir escavando até encontrar, com jeitinho, tic, tic, tic...

Dois rombos foram feitos. Cada um grande o suficiente para passar uma capivara, como bem observou a Renata. E nada do tal do cano. Já era terça-feira e Jurandir, um homem prático como pede a profissão, deu sua sugestão:

- O mais fácil é vir rasgando desde o banheiro, passando pelo corredor até achar outra ponta.

Acordei no chão, com a Renata me abanando.

- Seu Jurandir, nosso carpete de madeira, rapaz! Custa caro esse troço. Vamos pensar em outra coisa. Amanhã a gente vê.

Na quarta-feira resolvemos apelar para o faz-tudo, que estava quebrando um galho numa obra na igreja aqui perto.

O dito cujo...
Os mais religiosos vão atribuir o que se seguiu à recente excursão do faz-tudo à igreja. O fato é que, benzido ou não, ele encontrou o dito cujo.

Choramos e nos abraçamos. Matamos um cordeiro e o servimos com pão ázimo e ervas amargas, em honra da família do faz-tudo.

Entre as comemorações, o síndico nos lembrou que devíamos ter um laudo da Comgás dizendo que estava tudo bem.

- Só pra ter certeza...

Depois de 15 ligações, descobrimos que quem faz esse tipo de laudo são as terceirizadas. A Comgás só bota a mão caso eles tenham sido chamados para desligar o gás em primeiro lugar, como se alguém fosse besta de esperar a Comgás chegar enquanto tem gás vazando pelo cano pra dentro de casa...

Mais 15 ligações e finalmente eu descobri que o que eu queria era um teste de estanqueidade, e que ele ia custar. E ia custar caro (mhuahhuahuahua!). Hoje, finalmente, depois de uma semana, um técnico de uma dessas empresas veio executar o teste.

Teste de Estanqueidade
Que consiste em colocar um aparelho de medição de pressão no relógio, abrir o gás e verificar se a pressão interna baixa, o que é sinal de vazamento.

Resultado: ou está tudo bem ou eu segurei o ponteiro do aparelho só com a força do pensamento, o caso é que temos gás.

A mudança segue. Na semana que vem começa a fase de acabamento. Vamos ver que surpresas nos aguardam.