segunda-feira, outubro 09, 2006

São Paulo, 02 de junho de 2077

leia antes a primeira parte desse conto

A vibração suave do colchão me acordou exatamente às 07 da manhã, conforme programado na noite anterior. Ao meu lado, o hollodeck apresentava o menu de seleção onde eu podia escolher entre ver o noticiário mundial, a previsão do tempo ou um episódio aleatório do "Monty Phyton´s Flying Circus", humorístico que meu avô adorava e minha avó achava bobo. Resolvi ir direto para o banho, tinha muito em que pensar.

Depois do banho, me sentei para tomar meu café-da-manhã que, diziam, era igual ao do meu avô: uma caneca de café.

Meu pai falou primeiro:
- Que você tem Augusto? Anda sério demais nos últimos dias.
- Ahn? - me fiz de distraído.
- Já faz alguns dias que não tenho que brigar com você por mexer nos meus arquivos - disse com um riso irônico.
- Pai, eu vou passar uns dias por aí...
- Como "por aí"?
- É justamente isso, por aí, quero conhecer gente nova, lugares novos... - fui interrompido:
- Essa conversa de novo filho?!? Eu já te falei mais de mil vezes: tira seu avô e as idéias malucas dele da cabeça, pô!
- Não é ele mais pai, sou eu - menti - Eu estou com essa vontade de me desligar (me desligar nesses dias tinha um significado para além da metáfora...)
- Filho, você não precisa mentir pra mim. Vou te dizer uma coisa: aqueles tempos eram outros. A possibilidade do anonimato era real. As experiências interpessoais eram autenticamente aleatórias, até que as circunstâncias nos levaram a deixar as máquinas decidirem por nós...

Ele falava...e eu pensava num tempo em que conhecer pessoas dependia apenas dos lugares e de uma dose do que meu avô chamava de "cara-de-pau", algo como um abandono inconsequente de si mesmo.
Nesses dias, nossos dias, eu poderia a qualquer momento dar atenção aos bipes do meu data-watch, desesperadamente apontando a potencial parceira ou amigo que passa por mim na rua...potenciais...

- Está me ouvindo Augusto?

Acordei do transe, piscando os olhos:
- Acho que está na hora...

Levei a mão ao botão na minha jaqueta e o desliguei. Meu pai olhava, impassível. Levantei e saí, deixando a porta aberta atrás de mim.

sexta-feira, outubro 06, 2006

São Paulo, 01 de junho de 2077

Tive essa viagem de que um dia meu neto começaria um diário e uma busca baseados nas minhas experiências descritas nesse espaço. O resultado dessa viagem começa aqui e eu não sei exatamente onde vamos parar, meu neto e eu.


do diário de Augusto de Carvalho.


Meu avô faria 100 anos no próximo dia 22, o que me fez acessar antigos arquivos pessoais que ele havia salvo num extinto servidor daquilo que à época se chamava "blog" . Tive o cuidado de guardar os dados num cubo de memória e sincronizá-los com meu data-watch. A idéia do que vou fazer hoje me ocorreu lendo esses arquivos.

Ele falava pouco em lugares; não existem endereços. Suas descrições eram basicamente das suas experiências passadas em alguns pontos da Rua Augusta, da Av. Paulista, da Vila Madalena... São Paulo mudou muito, a começar do centro onde se passam a maioria das suas histórias e grande parte dessas mudanças começaram justamente enquanto ele escrevia: a linha B32 do Metrô (antigamente chamada de linha amarela) estava sendo construída e a Consolação ainda não havia sido repaginada transformando-se no Boulevard Andrea Matarazzo com a posterior transferência do tráfego para as galerias subterrâneas, o que só se tornou viável em 2050 quando os carros movidos a gasolina e biocombustível foram substituídos por motores elétricos silenciosos e não poluentes.

O Bexiga/Consolação, segundo pesquisas que fiz a partir dos escritos do meu avô e segundo histórias que ele mesmo me contou - durante minha infância até meus doze anos quando faleceu - era o interior de um quadrilátero formado pela Av. Paulista ao norte, Boulevard Matarazzo a leste, Vinte e Três de Maio a oeste e Anhangabaú ao sul. À sua época era uma região onde haviam cortiços, restaurantes tradicionais e bares frequentados pela boêmia. Boêmia que na região teve dois auges, o primeiro à época do sambista Adoniram Barbosa.

Ouvindo gravações do sambista nos velhos arquivos mp3 do meu pai (quando ele me deixava ouvir, claro - eram herança do meu avô) minha alma se enchia das histórias dos imigrantes italianos que ocuparam a região e dos filhos e filhas de escravos que vieram dividir o espaço com eles. Nas últimas décadas do século XX a região se degradou, e foi praticamente abandonada.

Quando meu avô se mudou para a região com a minha avó (no início do século), especialmente entre a Nove de Julho e a Consolação estava acontecendo um movimento gradual de ocupação por artistas, jovens casais de profissionais liberais, repúblicas de estudantes e - apesar da repressão homofóbica que ainda existia naquele tempo - homossexuais masculinos e femininos que encontraram naquele lugar um espaço totalmente democrático. Essa foi a segunda onda boêmia. Surgiram bares, livrarias, cafés, casas noturnas e esses começaram a ocupar lugares que antes eram casas abandonadas e prostíbulos.

Diferente da primeira, essa onda era formada por pessoas que não permitiriam a degradação do espaço onde viviam, atentas que estavam às experiências do passado. Ocorreu uma gradual transformação do bairro. O parque da Consolação, vital área verde da região nesses nossos dias, começou graças à mobilização dessas pessoas. Em 2020 o último bordel da rua Augusta foi fechado para abrigar um novo cinema. Em 2025 os moradores levaram petição à Prefeitura para que os últimos casarões não fossem derrubados para darem lugar a prédios mas sim restaurados e transformados em museus, bibliotecas e escolas parcialmente mantidos pelos próprios moradores organizados em associações. A "cidade" dos antigos, tão dura aos olhos de quem chegava, cinza, claustrofóbica, tinha se humanizado.

Cresci aqui, cercado dessas histórias contadas pelo meu avô ou por antigos moradores do bairro conhecidos dele. Parece ter um pedaço dele em cada esquina por onde passo mas ainda tem algo dele que não conheci, que permanece oculto em algum lugar nesses antigos bares e cafés.
Li cada texto seu e captei um sentimento que não consigo definir. Por trás das suas crônicas existia algo como um pertencimento de sua parte com relação aos lugares. Uma imersão total que ele transmitia como um sentimento de harmonia nos momentos em que ele estava cercado desses lugares e dessas pessoas, conhecidas ou não; posso estar enganado, mas penso que essa é a boêmia, e é atrás dela e dessas sensações que estou disposto a ir. E esse vai ser meu presente para meu avô.

São 23 horas; percebo pela redução na intensidade das luzes e pelo odor relaxante de canela que começa a sair pelos tubos da ventilação começando meu relaxamento para o repouso dessa noite. Amanhã começa minha busca. Olho para uma foto dos meus avós e me deixo vencer pelo sono.