terça-feira, outubro 09, 2012

Prove que você é inocente...




Antes de mais nada, quero deixar claro que não pretendo defender absolutamente nenhum dos réus que foram, agora mesmo, condenados pelo STF no julgamento do que a imprensa chama de mensalão.

E quero deixar claro que não sou jurista, mas sou bom observador e bem informado. Conheço desde sempre um princípio que diz que em caso de dúvida, dá-se ganho de causa para o réu.

O que acabou de acontecer foi a concretização de algumas aberrações jurídicas no STF: uma é a "flexibilização" da necessidade de provas para se condenar alguém.

Outra foi a inversão da prerrogativa de apresentação de provas. Agora, quem for julgado precisa apresentar provas de inocência. À acusação cabe a coleta de depoimentos, e isso basta como prova com base no princípio da lógica.

Pela lógica definida hoje, o fato de alguém ser chefe de alguém que foi julgado faz dele culpado. Afinal de contas, "como alguém que é chefe não sabe do mal-feito de seu subordinado?".

Que é o mesmo que dizer que o presidente da República tem obrigação de saber o que cada secretário de cada ministério está fazendo 24 horas por dia.

Se você acha isso pouco, saiba que a partir de hoje você tem que saber o que seu marido/mulher guarda no banco ou a conduta dele/dela no trabalho e na vida. Acompanhe suas declarações de imposto de renda e verifique se ele/ela votou nas últimas eleições. Porque o que o STF disse hoje é que "não é possível uma pessoa ter uma relação de tanto tempo com outra e não saber do que ela andava aprontando". E sim, eu estou exagerando. Ou não.

Nesse exato momento, o PT está sendo impresso nas capas dos jornais de amanhã como o partido mais corrupto da história desse país, envolvido no maior escândalo de corrupção da história desse país. Foi o STF que disse, não foi a FSP nem a Veja, nem o Serra. Aliás, a foto abaixo acabou de ser publicada no site da Veja.



Nos jornais não vai existir uma linha sequer dizendo que para aprovar uma lei são necessários votos no senado e na câmara, mas que nenhum senador foi vinculado ao mensalão.

Também não vão dizer que é o senado quem decide os quadros do STF.

Também vão esquecer de dizer que esse mensalão (que não é o primeiro nem vai ser o último) começou em Minas Gerais, que envolve Daniel Dantas e o PSDB. Eles não foram julgados e não são notícia. Os paladinos da justiça brasileira vão esquecer de ir além e cobrar do STF o julgamento desse processo que está na gaveta há 14 anos.

Também não será notícia a emenda da reeleição e as privatizações.

Hoje é dia de comemorar o fim do PT e a desgraça de Lula.

Ah, Lula. Como você não sabia?! Você não era o presidente?



terça-feira, setembro 25, 2012

Acordou o novo prefeito, Celso Russomano...


...no dia 07/01/2013


Começou o dia mantendo a velha rotina - “Não sou outra pessoa. Preciso lembrar disso sempre” - banheiro, café da manhã, paletó, rua. O carro oficial já o esperava para o primeiro dia de trabalho. “Parabéns, prefeito”, disse o motorista com um sorriso forçado. 
Devolveu um sorriso aberto e franco. “Vai ser um bom dia”. 
No caminho puxou assunto. Seu nome, “Jeremias”, mora onde?, “Em Guaianazes”, que brabo, hein?!

Pediu para passar por algumas ruas do centro. Queria ver onde Kassab tinha parado no projeto de limpeza da cidade. Admirava o ex-prefeito por sua coragem em afastar das ruas os notívagos. Queria, do fundo do coração, devolver a cidade às pessoas de bem, às famílias. Daria continuidade ao projeto. Fecharia bares, casas de show, prostíbulos. “Afinal, um sujeito que está na rua depois das dez ou é delinquente ou é bandido”.

Poucos dias antes de assumir teve uma reunião com Kassab e presidentes de construtoras e incorporadoras.

“Celso, esses foram os meus parceiros durantes esses anos de limpeza. A cidade precisava de um choque pra mostrar que estamos preocupados com as famílias. Matamos dois coelhos com essa parceria: tiramos os vagabundos das ruas valorizadas do centro e construímos lugares habitáveis para que os trabalhadores pudessem retomar essa região”.

“Mas falta o segundo passo”.

“Falta o segundo passo. Todos nós contamos com você para levar isso adiante”

“Não vou decepcioná-los”.


Linha cronológica do governo Celso Russomano

2013

Toma posse no dia primeiro

15 - Recebe levantamento de todos os casarões abandonados da cidade

16 - Recebe levantamento de todos os prostíbulos, bares e casas noturnas

26 - Segunda reunião com representantes das construtoras e incorporadoras em local secreto

31 - Anúncio do plano Nova São Paulo.


Fevereiro

02 - Assinatura de acordo com os donos de empresas de ônibus. O acordo prevê que “em hipótese alguma” os ônibus circularão depois das 22 horas em São Paulo”.

15 - Assinatura de acordo com empresas de demolição e com as construtoras. As primeiras receberão parte do lucro da construção de novos imóveis como pagamento pelos serviços. A prefeitura definirá o cronograma e os locais de demolição.


Ambos os acordos têm intermediação do governador Geraldo Alckmin, que pretende levar a proibição de circulação também para o metrô.


Março

20 - Os primeiros casarões abandonados do Bexiga vêm abaixo


Abril

30 - Lei que proíbe o consumo de álcool nas ruas é sancionada. A Guarda Civil Metropolitana começa o patrulhamento nas regiões da Augusta e da Bela Vista, expandindo para o centro velho, especialmente Consolação, República e Campos Elíseos.


Maio

07 - Estudantes da USP se reúnem na frente da Prefeitura para consumir bebidas alcoólicas. A imprensa chama a manifestação de “bebaço”. Há confronto com a polícia, o que causa 250 quilômetros de congestionamento. O congestionamento é a manchete dos principais jornais.

08 - Bares e casas noturnas das regiões da Augusta, Bela Vista e centro são fechadas. Prostíbulos são demolidos.

12 - Em missa na catedral da Sé, o prefeito pede “força a Deus para se manter firme aos propósitos cristãos”.


Junho

01 - A primeira Virada Cultural sem álcool acontece no centro. Para facilitar a inspeção, o evento é reduzido a um único palco no Anhangabaú. Eventos na periferia são cancelados. A taxa de homicídios atinge pico: 250 são assassinados no fim de semana em vários pontos da cidade, nenhum no centro. A imprensa chama o evento de “sucesso”. Matérias mostram famílias de Higienópolis e dos Jardins indo ao centro pela primeira vez.

20 - O último casarão da cidade cai. É pauta dos cadernos de cidades dos principais jornais e dos telejornais locais, que buscam antigos moradores. Um deles, conhecido como “Mato-Grosso”, chora de saudade.

Julho

10 - Por toda a cidade, máquinas se posicionam para iniciar as obras de novos empreendimentos. Apartamentos serão financiados a juros abaixo do mercado por um novo banco criado pela cidade de São Paulo. Para conseguir financiamento são necessários atestados de bons antecedentes e comprovação de família constituída.


Agosto

01 - A imprensa se reúne para cobrir o fechamento do último bar do centro da cidade. É uma Casa do Norte que estava aberta desde os anos 1950. Moradores dos prédios vizinhos comemoram: “Isso aqui era bagunça toda noite. Finalmente vamos ter sossego!”, diz uma senhora que se mudou para o centro em 2011, vinda do Morumbi.


30 - Com o centro pacificado, o prefeito concentra esforços na periferia. É lançado o projeto “Amigo da Vizinhança”. Pessoas com bons antecedentes podem se oferecer para ajudar a patrulhar o bairro. Vinte mil se cadastram nas primeiras horas.



Novembro

06 - Morro Grande, a última favela da cidade termina em chamas. Peritos investigam o caso e concluem que o fogo foi causado por um curto-circuito.


08 - Máquinas de terraplanagem começam a trabalhar no terreno da Morro Grande, que abrigará um shopping center.


10 - Habitantes da Morro Grande recebem o direito a um apartamento em uma das novas moradias populares construídas em Marsilac, extremo sul da cidade. O certificado de bons antecedentes é exigido.


Dezembro

01 - Lançado o programa “Natal em Paz”, em parceria com o governo do estado. O programa prevê o aumento do efetivo da Rota e da Guarda Civil Metropolitana. Ambos irão patrulhar todas as ruas de São Paulo na semana entre o natal e o ano-novo.



2014

Janeiro

02 - Saldo do programa Natal em Paz é anunciado. Quinhentas pessoas detidas e 200 suspeitos mortos.

07 - Uma comissão de artistas tenta se reunir com o prefeito para discutir a falta de incentivos à cultura. Não são recebidos.

25- Primeira turma dos “Amigos da Vizinhança” vai às ruas no aniversário da cidade. Na primeira semana de atuação são 154 os detidos em “atitude suspeita” ou “porte de bebida alcoólica”.



Março

13 - Uma comissão de educadores tenta se reunir com o prefeito para discutir problemas estruturais nas escolas municipais. Não são recebidos.

14 - O Shopping Augusta é inaugurado entre as ruas Marquês de Paranaguá e Caio Prado. Na mesma semana é inaugurado o Megatério, torre de 40 andares entre as ruas Matias Aires e Peixoto Gomide.


Maio

20 - A primeira morte causada por um Amigo da Vizinhança - Ralf Medeiros, de Pirituba - não é registrada.

21 - O Amigo da Vizinhança Ralf Medeiros recebe a medalha Anchieta por “serviços prestados à comunidade”


30 - Em pronunciamento, o prefeito Celso Russomano chama São Paulo de “cidade pacificada, pronta para receber os visitantes estrangeiros que virão ao Brasil por causa da Copa do Mundo”.


Junho

12 - A abertura da Copa do Mundo é restrita a turistas estrangeiros. A Rota faz o patrulhamento de um raio de 15 quilômetros do estádio. Mais de 600 pessoas são detidas tentando fazer comércio ilegal no estádio, imediações e no metrô.


Agosto

8 - Inaugurado o primeiro prédio que combina apartamentos, escritórios, escola particular, shopping center e escritórios no centro São Paulo.

10 - A Sala São Paulo é fechada por falta de verbas.

11 - Maestro e músicos da OSESP são presos por suspeita de corrupção.

Setembro

10 - Sessenta feridos em queda de laje no Shopping Augusta. Peritos da prefeitura dizem que acidente foi causado por “pequenos abalos sísmicos”. Perguntados sobre a novidade geológica, calaram-se.


Dezembro

24 - Grupo intitulado “9 de Julho” pixa paredes de prédios públicos com frases incitando a população à desobediência civil.

26 - Chefe da secretaria de segurança anuncia parceria com “todas as forças” de segurança para punir os vândalos responsáveis pelas pixações.



2015

Janeiro

01 - Grupos de jovens - muitos deles menores - portando bebidas alcoólicas são presos em todos os pontos da cidade. Boa parte é liberada por falta de vagas nas unidades da Fundação Casa e nas delegacias

15 - Jovens de skate fecham a Av. Paulista. A imprensa chama o movimento de “skataço”.


Março

05 - Ex-frequentadores da Augusta vão às ruas do centro mobilizados pelas redes sociais. Todas as combinações de gênero possíveis carregam faixas dizendo “eu também sou família” e “quero meu espaço de volta”.


Abril

18 - O movimento agora batizado de “Eu sou família” promove uma “Virada Cultural - Lado B” em várias partes da cidade. A polícia tenta reprimir o consumo de álcool, mas é reprimida pela multidão. Há confronto. Crianças e adultos morrem.

19 - Na imprensa, os dois vereadores da oposição exigem investigação sobre as mortes na Virada.




Maio

15 - Em coletiva de imprensa, o prefeito divulga o nome de dois policiais responsáveis pelas mortes na Virada. Chama o fato de “página virada”. Na mesma coletiva, anuncia a construção de um novo hospital no Mandaqui e um novo terminal de ônibus, mais moderno, que irá substituir o Tietê, na Luz, integrado ao novo hub de linhas do metrô e da CPTM. É ovacionado.


Setembro

20 - Com popularidade recorde (95%), o prefeito anuncia previamente sua candidatura à reeleição em 2016.


Dezembro

01 - Ex-moradores de favela, do centro de SP, ex-frequentadores e donos de bares, ex-moradores da região, artistas, professores e outros servidores públicos municipais se juntam em uma marcha que reúne mais de 1 milhão de pessoas na Av. Paulista contra o prefeito. Acampam na avenida causando mais de 400 km de congestionamentos na cidade.

02 - A prefeitura responde com um exército formado de Amigos da Vizinhança com apoio tático e logístico da Polícia Militar. O evento passará a ser chamado de Massacre da Paulista, o último ato do prefeito antes de ser destituído do cargo.

quinta-feira, julho 05, 2012

Um louco de alma lavada



Diante da tela branca, pouco mais de quatro horas antes da final da Libertadores, eu tento me lembrar por que diabos eu virei corintiano.

Quando moleque eu não dava lá muita bola pra futebol. Cheguei a torcer para o Palmeiras por afinidade com uma tia muito querida. Torci também para o Flamengo, por admiração pura e simples por aquele time que tinha Zico, Júnior... Foi só depois de quase adulto que percebi como meu avô - corintiano roxo - deve ter tido vontade de me esganar, deserdar, defenestrar por essas heresias.

A década de 1990 passou, títulos vieram, times e craques geniais vestiram a camisa alvinegra, e eu não dava bola pro Parque São Jorge. Esbocei aqui e ali uma comemoração tímida. A verdade é que até então eu era corintiano como era católico: um não-praticante que simplesmente seguia a religião do pai, do avô.

Coisas da vida: como acontece com o alguns amantes que só percebem a falta que o objeto de afeição faz quando ele lhe falta, foi o miserê danado que o Corinthians passou nos últimos 10 anos que despertou a paixão adormecida.

Não, não foi a zoação incontida e escrachada dos adversários cujos times andavam em boa fase que me fez empunhar a lança de São Jorge.

O que realmente me tocou foi a fidelidade barulhenta da fiel.

A gritaria com que os "loucos" declaravam amor pelo seu time mesmo diante dos piores resultados. Apanhavam, mas de peito aberto, prontos pra outra. As mazelas choradas em grupo doem menos, e não existia - nem existe - grupo mais unido pela dor e pelas lágrimas.

E é pra isso que estou preparado hoje. Pra gritar "campeão" ou pra botar o violão no saco.

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O Corinthians acaba de conquistar um título histórico. E, me chamem de louco, mas enxergo nele um reflexo, não da conquista de 77, mas da Democracia Corintiana. 


Explico.


É fácil associar o drama dos 22 anos de jejum de títulos com a briga do Corinthians pela Libertadores - último título de vulto que o time nunca conquistou. Mas pare e pense no período em que Sócrates, Wladimir e companhia, ainda nos tempos de ditadura, brigaram por Democracia.

No fim da ditadura, a equipe resolveu peitar o governo, a censura e boa parte da imprensa que a engolia para dizer que estava na hora do país viver uma democracia.

Reserve a informação.

Nas últimas duas semanas as redes sociais têm se dividido em três partes.

A primeira é silenciosa - com raras exceções histriônicas -, é composta pelos adversários que levam a rivalidade à sério e que sabiam que essa era, definitivamente, a vez do Corinthians. Meus respeitos.

A segunda, claro, era a voz da Fiel. Dispensa comentários.

A terceira foi a que me preocupou.

A terceira foi a da massa de pessoas que não se manifesta, nem contra, nem a favor, na maioria das disputas futebolísticas. Se diz sem time. Fica indiferente diante da derrota do Corinthians. E fica indiferente diante da vitória de São Paulo, Palmeiras, Santos, mesmo nas mais barulhentas finais de campeonato.

Hoje essa massa resolveu se manifestar. Pra reclamar.

Porque corintiano não pode comemorar - porque não sabe comemorar. Corintiano é mais barulhento do que qualquer outro torcedor. É mais sujo. É mais violento.

Não foram poucos os pedidos pra não sair de casa - havia riscos de assaltos, quebra-quebra, saques, porque o populacho ia sair às ruas. (alguns brincaram: "calma, hoje não tem assalto, os bandidos estão todos torcendo). Nunca, em toda minha vida de torcedor, eu tinha ouvido alguém reclamar que o barulho da torcida ia atrapalhar os hospitais perto da sua casa. Hoje eu ouvi.

Tudo isso, penso, é reflexo da São Paulo de hoje. Essa São Paulo kassabista/alckimista que resolve a própria incompetência na base da proibição. São Paulo que a cada dia perde o status de cidade de vanguarda para o de cidade medíocre, em que os cidadãos almejam espaço privado em detrimento de espaço público. Reduza-se o segundo para aumentar a segurança do primeiro.

É por isso que o Corinthians tinha que ganhar esse título.

E tinha que ir pra rua e fazer barulho pra mostrar que cidade viva é cidade que pulsa e é democrática. Você pode até fazer cara de nojinho, mas o barulho, o pixo e o lixo fazem parte do espaço público.

Pior! Quando você acordar amanhã, o apocalipse não vai nem ter acontecido. A cidade ainda vai estar em pé. Os corintianos, os palmeirenses, os são paulinos e vocês ainda vão estar indo trabalhar.

O nome disso é democracia.





domingo, junho 17, 2012

Watergate: 40 anos e uma lição para a imprensa


O caso Watergate, pivô da renúncia do presidente Richard Nixon em 1974, completa 40 anos. É pauta obrigatória em cursos de jornalismo, mas não chegou a contaminar as redações. Depois de quatro décadas, permanece um exemplo raramente seguido.

Um pouco de contexto:

O escritório do partido democrata em Washington, localizado no hotel Watergate, foi arrombado. Um porteiro do edifício resolve contar a história para o jornalista Bob Woodward, do Washington Post, que passa a investigar o caso. Em dois anos, Woodward e seu colega Carl Bernstein juntam fiapos de informação que levam a uma conspiração armada por militantes republicanos. Recebem dicas de uma fonte que permaneceu anônima. Sobem pelos escalões do poder até chegar à Casa Branca. A coisa fede tanto que Nixon renuncia e passa para a história como um dos presidentes mais impopulares da história estadunidense.

A lição de Woodward e Bernstein pode se resumir a duas coisas: faro e investigação. Uma coisa não é nada sem a outra.

Eles tinham sua fonte, sua Garganta Profunda, mas nenhuma informação dada pela fonte foi publicada sem investigação, sem checagem e rechecagem. O que os movia era a busca pela verdade, independente de qual fosse essa verdade.

Se a cobertura do Post deve representar algo esse algo esse algo é que a imprensa só exerce seu papel social quando age de forma independente. Livre de amarras corporativas, politicas e ideológicas, a imprensa pode sim ser um veículo de mudanças, sem trocadilho.

Mas renunciamos a esse papel.

Jornalistas se tornaram operários construtores de verdades. Fontes falam a verdade e somente a verdade. Uma verdade que só precisa ser checada quando contraria os interesses do dono da obra.

Jornalistas desaprenderam o poder da pergunta. Saem das redações com seus macacões sujos de tinta e uma pauta na mão. A pauta é a Bíblia que não pode ser questionada, muito menos aprimorada. Foram escritas pelos sacerdotes do sistema, os mestres de obra, atentos aos interesses da trindade mercado, partido, ideologia.

Woodward e Bernstein, hoje, estariam desempregados.






terça-feira, maio 29, 2012

Da imprensa, do juiz e do Lula



Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Tem uns, porém, que têm olho mas preferem não ver. São os ditos piores cegos. Aqueles pra quem não importa a luz dos fatos, pra quem cai melhor a escuridão da ignorância e do preconceito. É pra esses que escrevo agora, sabendo que não vou ser lido.

Faz tempo que digo que São Paulo é terra de cegos. Desde 1994 insistem que o melhor para eles é ser governados por um partido que não é partido. Que não tem programa, não tem plano; porque o plano desse partido é o entreguismo, o estado mínimo, a via fácil: "lavamos as mãos, entregamos tudo para a iniciativa privada, e posamos de eficientes".

Esse partido também conseguiu emplacar um desconhecido na prefeitura da maior cidade do país. Isso foi logo depois de um dos maiores expoentes desse partido ter saltado de banda da cadeira municipal para alçar vôos mais altos. Expoente esse que sentou na cadeira logo depois da prefeita Marta Suplicy.

A mesma Marta Suplicy que teve peitos para brigar com  a máfia dos transportes para implantar um sistema único de cobrança de passagem. Que implantou o CEU e levou educação de qualidade - período integral, com teatro, música e piscina - para a periferia.

Mas a população de SP só lembra de Marta por ter trocado o Suplicy por um argentino e por uma frase infeliz. Maior caso de Geni na política nacional, não há.

Corta para 2012. A população de SP parece finalmente cansada de falácias e promessas - de Metrô, de anel viário, de ciclovias - e pronta para votar no candidato do PT. É o ciclo democrático, acontece em todo lugar.

Em SP, porém, não pode acontecer. Porque o PT é, e sempre foi, a desgraça de SP.

Gênios do Instituto Millenium e das redações de jornais e revistas vinham matutando: "como podemos impedir que essa tragédia se abata sobre nós?". A resposta veio de um encontro.

Um mês atrás, Lula foi visitar Nélson Jobim na casa do ex-ministro da Defesa. Jobim é notório adversário do Petismo. Assumiu com a pasta da defesa em 2007 porque assumiu - jogada política de Lula? Competência pura e simples? Assumiu.

E Lula foi visitar Jobim.

Na casa de Jobim estava Gilmar Mendes. Que um mês depois, quase como em um caso de assédio moral,  achou por bem dizer que foi cooptado por Lula para que intercedesse junto ao Supremo para que o Tribunal máximo do país adiasse a votação do Mensalão.

Mendes, indicado por FHC, tem um currículo invejável com vários recordes de concessão de habeas corpus para suspeitos de corrupção.

A Veja deu ouvidos para o juiz. Até aí, nenhuma novidade.

Desde a entrevista à Veja, Gilmar já deu pelo menos três versões dos fatos em entrevistas para outros veículos. Veja uma delas, para a Globonews.


Hoje, o ministro lembrou-se de mais um trecho da entrevista. Dessa vez ele se lembra de ouvir o nome de Paulo Lacerda, ex-diretor da PF que, segundo ele, teria sido contratado pelo PT para encontrar informações contra ele.

Para quem não é cego, essas pataquadas bastariam para enxergar que Mendes, mais uma vez, brinca com a opinião pública.

Nem precisaríamos lembrar que Jobim já disse que Lula foi à casa dele, encontrar com ele - e não com Gilmar Mendes - e que em nenhum momento ele ouviu Lula sequer mencionar a CPI. Depoimento, aliás, que não teve destaque algum nas manchetes ou nos telejornais, ficando relegado aos labirintos do jornalismo cibernético.

Mas tem cego que não quer ver. Que prefere dizer que a defesa da verdade não passa de histeria lulista.

Também deve ser histeria lulista apontar que São Paulo tem 16 de suas 31 subprefeituras entregues nas mãos de coroneis aposentados, muito dispostos a descer o cacete em qualquer um que interfira na "ordem pública". Obra de Kassab.

Também deve ser histeria lulista lembrar que Marta Suplicy aprovou, em 2004, um plano de investimentos que previa 200 km de corredores de ônibus. Projeto devidamente engavetado pelos seus sucessores, especialmente o José Serra, para quem mais ônibus significa mais trânsito.

Esse garçom, meus amigos, é um histérico defensor da verdade de que 18 anos de governo do PSDB na minha cidade e no meu estado não provocaram nada mais do que caos, atraso e a volta de uma repressão que nem no sonho do mais ferrenho anti-petista se tornariam realidade.


segunda-feira, maio 07, 2012

Quando morre um garçom


O Segundo Clichê é um bar ao lado de casa; foi um dos primeiros abrigos etílicos em Brasília. E o Greg foi o primeiro garçom que me atendeu.

Coisa de garçom, Greg começou me tratando com a frieza típica destinada aos clientes de primeira viagem. Como conquistar garçons é um dos meus esportes preferidos, logo dobrei o sujeito que em algumas visitas já sabia da minha cachaça preferida e não passava na minha mesa sem um ou dois dedinhos de prosa.

Na sexta-feira fiquei sabendo de outro garçom, o Renato, que Greg tinha falecido:

- Cadê o Greg? - perguntei. O rosto do Renato apagou.
- Você não tá sabendo?

E eu entendi.

Quinze dias antes, numa sexta-feira, Greg tinha ajudado a fechar o bar às duas da manhã e tinha pego carona - como sempre fazia - com um amigo que morava próximo, em Valparaíso. No carro também estavam dois funcionários do Beirute, outro bar próximo.

No trevo de Valparaíso, um taxista bêbado e em alta velocidade fechou o carro onde estavam os homens, que capotou.

Greg tinha 32 anos. Deixou mulher e um filho de seis anos.

Descanse em paz, camarada.

Sobre viradas e cultura



Estou longe de SP desde a edição passada da Virada Cultural e não é sem uma pontinha de inveja que imaginei os amigos fazendo sua programação, marcando os shows imperdíveis, se encontrando "na catraca do metrô tal à meia noite". É bonito ver milhões de pessoas se mobilizando para ver e sentir arte, ocupar a cidade. 

Com um pouco de atraso resolvi falar sobre o assunto. Atraso que pode até ser bom; uma leitura pra ressaca do evento, que tal?

Li em algum lugar alguém, de quem não lembro o nome, dizer que a Virada Cultural devia ser a cereja do bolo das políticas culturais da cidade. Concordo, assino embaixo.

Na minha São Paulo utópica a cultura acontece todos os dias e, em muitos casos, sem a necessidade de carimbo da prefeitura, do governo estadual ou federal. Acontece e ponto. Apoio das esferas do governo? Sempre bem-vindo. Intervenção e uso político? Nunca!

Política cultural envolve uma porrada de coisas, de transporte público diuturno a segurança. Mas não envolve repressão e fechamento de bares e casas noturnas.

Política cultural envolve criar mais áreas verdes na cidade. O caso do terreno vazio da rua Augusta, por exemplo, não devia chegar nem perto de virar polêmica: a área deve virar um parque. Ponto. Ou você acha que SP precisa de mais supermercados e shopping centers?

Cidades existem para serem ocupadas e ocupação depende, entre outras coisas, de deslocamento. Uma cidade como São Paulo, que vira e mexe é comparada às grandes capitais mundiais como Nova Iorque e Tóquio, deve para seus habitantes um sistema de transporte que funcione durante toda a madrugada. Faça isso e não vai demorar para você observar o número de acidentes causados por motoristas bêbados cair consideravelmente.

São Paulo já tem uma vocação cultural tremenda. Cabe ao próximo prefeito entender que vocação existe para ser desenvolvida, não imposta. Arte não pode ter dia nem hora marcada pra acontecer.



quarta-feira, março 28, 2012

Dois humoristas a menos em menos de uma semana

O Brasil está passando por um risocídio. Primeiro, Chico, agora é Millor Fernandes quem bate as botas. As duas mortes praticamente ao mesmo tempo são simbólicas: o humor está indo embora do país.

E o que está ficando é um arremedo de comédia.

Chute uma pedra na calçada irão aparecer três "humoristas de stand-up".

Ligue a TV no horário nobre e você verá pelo menos um programa de "jornalismo humorístico".

Porque é mais fácil fazer rir com obviedades chulas. É mais engraçado apontar o dedo pros defeitos de quem não pode (ou não tem capacidade de) responder à altura. Se der errado, faça um mea culpa, chore umas lágrimas de arrependimento, e volte ao ar em outro programa usando a mesma fórmula.

Millôr foi um dos primeiros caras que me fez rir e querer fazer piada. Também foi o único que conseguiu me fazer ler uma peça de teatro (só uma - Computa, computador, computa - que eu não sou de ferro...). Não conseguiu me fazer ler Shakespeare, mas isso é outra história.

Adolescente, aprendi com ele que humor pode ser elegante, fino e, ao mesmo tempo, certeiro. Nas mãos de um cara hábil, o humor pode ser um tapa com luva de pelica na cara da sociedade, uma bola por baixo das pernas do mais atento censor, do mais ferrenho crítico.

Sem o Millôr a gente fica assim, bobo.

domingo, março 25, 2012

Original ou dublado?

Domingão. Dia de reclamar.

Faz tempo que eu me irrito com a redução de programas com áudio original e legendas na TV por assinatura. Gênios da análise de mercado dão o fato como irreversível, graças à entrada da classe C no grupo de assinantes desse tipo de serviço. Concordo em termos. Mas aplaudo e defendo o direito que todos têm ao lazer.

Agora, usar isso pra justificar a retirada dos programas com áudio original da grade de programação merece duas explicações simples:


1) Preguiça

Todo mundo sabe que existem três (não dois) canais de áudio e um de legenda disponíveis para todos os canais de qualquer operadora. Querer me convencer de que usar a tecnologia é uma questão complexa - pior, inútil - é me chamar de otário.

2) Tendência "sadomercadológica"

É prática comum das teles (TVs por assinatura e operadoras de celular) correr atrás de aumentar sua fatia de participação no mercado. Para quem não é assinante, todas as vantagens. Para quem é, bom...ele já é assinante, não é?


Até aqui estamos na seara dos direitos do consumidor. Me sinto lesado e pretendo levar isso aos canais competentes. Debate entre consumidor e prestadora de serviços, e ponto.

O problema é quando um veículo de comunicação tenta me fazer engolir a "novidade" calado.

Hoje, no Estadão, uma distinta jornalista (blogueira? jornalista? sei lá) tenta me convencer de que "essa história de que o aumento de oferta de programas dublados na TV por assinatura  foi causada pelo aumento do número de assinantes da classe C é balela", na verdade isso seria uma tendência de mercado. Tenta me convencer de que eu  - que prefiro programas com áudio original e legendas - sou minoria. Faz isso no melhor estilo "jornalismo de release", aquelas matérias que depois de lidas fazem você jurar que foram escritas pelo departamento de marketing de uma empresa.

A empresa que escreveu essa matéria específica foi a a TNT, canal de TV que, segundo a matéria, oferece programas dublados há mais de 20 anos (só esqueceram de aferir a audiência da TNT, mas beleza).

Na matéria, somos apresentados a uma pesquisa encomendada pela mesma TNT que mostra que "apenas a metade dos consumidores prefere programas com áudio original a dublados". Me corrijam se eu estiver errado, mas metade de qualquer número não é exatamente desprezível, estatisticamente falando.

Também tenta nos convencer de que as pessoas, na verdade, têm vergonha de admitir que preferem ver programas dublados ao invés de legendados. A homilia vai além: diz que as TVs de tubo - que ainda são maioria (!!!) - tornam a experiência de ler legendas desconfortável.

Cita alguns exemplos de canais que obtiveram sucesso ao mostrar apenas programas dublados como o Telecine Pipoca. Vejam vocês: o Telecine Pipoca é um dos poucos canais que passam, sim, programas dublados, mas oferecem a opção de assistir à programação com áudio original e legendas, mas a assessora de imprensa desconhece. Não sabe. Não viu.

Cerejinha do bolo, pra você que prefere ver o programa em áudio original, seja essa áudio qual for:

"quem duvida do interesse da massa pelo bom português "falado", convém conferir a tabela ao lado: dos 16 canais mais vistos na TV paga brasileira em 2011, 18 dispensam legendas"

Eu me interesso por jornalismo bem feito...

sexta-feira, março 23, 2012

Velho Chico

Quando eu era criança era farta a oferta de programas humorísticos na TV - Humorísticos, com H maiúsculo, que é uma classificação que só pode existir nesses tempos de humor insípido, onde se argumenta que não dá para fazer graça porque não se pode falar palavrão ou ofender ninguém.

Todos os humorísticos daqueles tempos tinham à frente um grande personagem catalisador. Os maiores: Jô Soares, Renato Aragão e Chico Anysio, que pra mim ainda é Anísio. No formato vigente, os programas giravam em torno dos personagens criados por esses mestres do humor. Algo diferente da escola estadunidense ou da escola britânica, em que grupos de humoristas dividiam personagens e piadas em esquetes elaboradas. Por aqui, as piadas gravitavam em torno de um gênio, o resto do elenco era escada para o punchline, o clímax, interpretado por esse gênio.

Tempos atrás a Globo botou no mercado três caixas de DVD com os "melhores momentos" desses três mestres - melhores na opinião de algum guru mercadológico anônimo da Globo Marcas, o que vale outra discussão. Tentaram resumir em dois ou três discos tudo o que foi feito pelos Trapalhões, pelo Jô Soares com Viva e Veja o Gordo e Chico em Chico City e Chico Total. Comprei os três.

Foi com surpresa que vi que, dos três, o humor que tinha envelhecido melhor era o de Chico Anísio.

Porque na minha memória, o humor "mais engraçado" era o do Jô Soares - culto, salpicado de críticas sociais e políticas. O do Chico era popular, beirando o chulo. O dos Trapalhões, sem nenhum demérito, era infantil.

O saldo da revisão foi o seguinte:

Os programas do Jô Soares eram caricaturais. Jô e seus redatores criavam pastiches da política e, em menor escala, da sociedade da época. As piadas alternavam-se entre extremamente populares e extremamente pedantes. Envelheceram muito mal.

Os Trapalhões não eram o Renato Aragão. Longe disso, como provam as constantes tentativas de ressurreição do formato pelo humorista. O grupo era Mussum, Zacarias e, em menor escala, Dedé - esse sim, o maior escada da história da comédia brasileira. As piadas em grupo buscavam inspiração no humor físico/circense. Quando dada a chance, Mussum e Zacarias roubavam a cena com personagens que eram puro espelho da realidade. Mussum era o mestre. Didi era uma cópia mal feita de Charles Chaplin.

Chico era o único humorista dessa geração que realmente trazia algo novo. Fazia crítica social ácida através das dezenas de personagens que criou sem ficar datado. Coalhada era e é o perfeito resumo do boleiro falido. Pantaleão - além de elo de ligação com o realismo fantástico latino americano, coisa que nem o pseudo intelectual Jô conseguiu fazer - é um "coroné" brasileiríssimo. Bozó e Adalberto Roberto formam o amálgama do eterno global (sou da Globo, sou bobo, mas tou na moda).

Ele conseguiu trazer para a TV um humor verdadeiramente regional, verdadeiramente brasileiro.

Também conseguiu temperar com pimenta e coentro o stand-up, gênero americano de humor que virou uma praga por essas bandas.

O stand-up em si é simples: um sujeito ou sujeita em cima do palco apontando para a plateia os fatos ridículos do seu dia-a-dia. Não é um vomitório de obviedades como "o trânsito de SP é uma merda", tão comuns no repertório brazuca. A graça está em apontar o óbvio com situações cotidianas, ser sutil, respeitar a inteligência da plateia. Mas divago.

Chico foi além ao introduzir a crônica - gênero muito nosso - no palco. Se apropriou das técnicas de stand-up (timing, punchline) e as adaptou para contar histórias genuinamente nossas.

E a grande perda que sinto hoje é essa: morreu um mestre que não deixou discípulos. Tá todo mundo fazendo stand-up desvirtuado, quando tudo o que os palcos precisavam era de alguém contando histórias, causos, piadas.

Chico, veja daí onde você está agora se não dá pra mandar um Professor Raimundo pra ensinar pra esses meninos como se faz rir do óbvio sem ser óbvio e besta.

E chega, que tou ficando chato. Fiquem com o Chico, fazendo o que ele fazia melhor.







O Bebê Gigante

Crônica originalmente publicada em algum lugar, lá em 2005. Pelo menos eu acho que foi...


1


O pai suava no corredor da maternidade. A gravidez da Doralice tinha sido difícil.  Desde os três meses a barriga da esposa aumentava a olhos vistos, a cada dia que passava. Não era normal... Não era normal.

- Sr. Ademir?

- Sou eu! – ele gritou. O cigarro apagado e amassado caiu da boca.

- Parabéns, sr. Ademir. O senhor é pai de um...bem... – coçou a cabeça. Como se dá uma notícia assim?

- Um quê, doutor?! Fale homem!

- Assim que o senhor largar a minha gola, obrigado. Olhaí, amassou tudo. É um Lacoste, pô.

- Desembucha!

- Sua esposa está em recuperação, foi um parto complicado. O bebê está bem, exceto...

- Poupe-me da linguagem técnica!

- Ele nasceu com 95 centímetros e 9 quilos.

2

Ademir acordou na cama, ao lado da mulher. Ela estava descabelada. A língua pendia para fora. Os olhos semicerrados.

- Doralice... – chamou Ademir, com um fiapo de voz. Doralice, minha filha...você está bem?

Doralice arregalou os olhos.

- Eu...eu... – deu um longo suspiro e silenciou.

A cabeça sorridente do médico apareceu na porta.

- Papai, mamãe? Olhem quem chegou!

Entrou no quarto. Trazia o bebê pela mão. Ele caminhava. E emitia um som gutural.

- UUhhhh

Ademir desmaiou de novo. Doralice chorou. Enfermeiras chegaram correndo. O bebê puxava o jaleco do doutor.

- Larga daí, menino! É um Lacoste!

3

Em três meses a família teve que sair do apartamento de dois quartos no centro da cidade para um sobrado no subúrbio. A chegada à casa nova causou comoção na vizinhança.

- Jorge! Ô Jorge! Vem cá ver os vizinhos novos!

- Será que ele torce pro Corinthians?

- O que é aquilo ali saindo do carro?...  SANTA MÃE DE DEUS!

- UUUUUUh!

O menino estava com dois metros e meio e mais de cento e vinte quilos. Em todo o resto, era um bebê normal.

- Uuuuuuuh!

- Sua vez de dar a mamadeira, Ademir.

- Saco...

A vida ia nessas e os pais acabaram se acostumando com aquele serzinho de três metros de altura. O problema eram as contas. Além de comer proporcionalmente ao tamanho, o bebê precisava de fraldas feitas sob medida pela Johnson & Johnson. Quilos de Hipoglós eram gastos por semana.

Ademir teve que arrumar outro emprego, de segurança noturno em um supermercado. Entrava na repartição às 9hs, saía às 18hs, passava em casa, tomava banho e saia às 20hs, para voltar para casa apenas às 5 da manhã. Estava ficando careca. Os colegas zombavam dele.

Também não era fácil para Doralice, que passava o dia entre o fogão, onde esquentava a tina de leite, e a lavadora industrial que eles tiveram que mandar instalar para lavar as roupas do bebê.

À noite, durante o pouco tempo que tinham para interagir, trocavam suspiros.

- UUUUUUUUH!

- Sua vez...

- Saco...

4

Um dia o bebê sentou no gato da vizinha. A mãe ralhou com ele e ele chorou muito.

- UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHH!

Sentiu-se rejeitado. Saiu de casa, derrubando a porta e chamando a atenção dos vizinhos.

- Marta, que que é aquilo, mulher?!?!??!

- AAAH!

O bebê andava pela rua, segurando o gato morto pelo rabo.

- UUUH!

A notícia se espalhou, chamando a atenção da imprensa. Começou na internet:

“Bebê de 10 metros de altura vaga pela cidade” (Folha de S. Paulo)

“Neném do inferno apavora perifa” (Meia Hora)

Logo, helicópteros das redes de rádio e TV e da polícia estavam no encalço do bebê gigante.

- É verdade, Sandra. Um bebê de mais de 20 metros de altura está a caminho do centro da cidade! Veja as imagens.

- Nossa, Evaristo. O que é aquilo na mão dele? É um gato morto?

- É verdade, Sandra.

- É um absurdo. A pergunta que a população faz é: onde estão as autoridades?

Doralice, que a essa altura estava desesperada, vê a notícia na TV e desmaia.

A comoção é geral. O governador pede a ajuda do delegado Paranhos, especialista em rebeliões da Fundação Casa. A coletiva de imprensa foi disputada a tapa.

- O elemento neném se evadiu para o centro e nós já estamos mobilizando unidades para cercá-lo. Temos total apoio das forças armadas para acabar com essa ameaça. Pra mim, neném bom, é neném na creche!

5

- UUUhhhh

O bebê seguia pela cidade, deixando atrás de si um rastro de destruição. Devorara todo o estoque de bolos de três padarias e deixara duas franquias do McDonalds à míngua. Num cruzamento congestionado, resolveu brincar de Hot Wheels e causou um engavetamento. O corpo do gato, totalmente estropiado, foi usado pelo pequeno monstro como motorista de uma betoneira. Toneladas de cimento ficaram espalhadas pela via.

No centro de operações, o comandante da força especial, Delegado Paranhos, discutia a estratégia de captura da ameaça infantil com militares das três armas.

- Senhores. Alguma ideia?

- Vamos atraí-lo com algodão-doce e prende-lo. Propôs um.

- Não. Levaria dias para juntar todo o material necessário. Respondeu Paranhos, depois de curta reflexão.

- Que tal construir uma prisão com Lego? 

- Hm...não. Precisamos de algo épico. Grandioso. Algo que seja lembrado por...já sei! Vamos precisar de todas as bandas marciais que vocês puderem reunir. Também precisamos de todos os palhaços disponíveis.

- Mas Paranhos...o que...?

- Não discutam! Mexam-se!

6

O bebê estava tomando um barril de coca-cola quando os veículos militares começaram a se aproximar. Jipes, tanques, urutus. Acima, helicópteros militares adaptados com imensos alto-falantes. No primeiro deles, o Delegado Paranhos advertia pelo megafone:

- Atenção, neném! Atenção, neném! Neném fofinho! Neném naná! Olhaí neném, cuidado, senão a Cuca vai pegar!

Os pais do bebê, os vizinhos, todo o país acompanhava apreensivo pela TV:

- É uma operação ousada, Evaristo. O delegado Paranhos pode sair dessa como herói ou como um completo imbecil.

- É verdade, Sandra.

Paranhos deu o sinal. No solo, um coro de mais de mil palhaços cantava Nana Nenê, a altos brados, acompanhado de uma orquestra gigantesca. O som era reproduzido pelos alto-falantes instalados no helicóptero.

O suor escorria pela testa de Paranhos. Ademir, sem cabelos, com a camisa furada, olhava Doralice, desgrenhada, com o avental sujo de ovo. Evaristo segurou a mão de Sandra, que tirou rápido fazendo cara de nojo.

Até que o bebê bocejou. Levantou com agilidade neonatal e começou a anda na direção de casa. Foi escoltado pelos veículos militares, pela orquestra e pelos palhaços.

Ao chegar em casa foi recebido pelos pais. Doralice gritava: “meu filho! Meu filho!”. O bebê jogou longe o que sobrou do gato. Se espreguiçou e deitou em cima da casa, demolindo-a. Ajeitou um pouco de entulho, fazendo um travesseiro. E dormiu feliz.