quarta-feira, janeiro 31, 2007

? de junho de 2077

pra quem ainda não sabe do que se trata, leia antes:
parte 1, parte 2, parte 3, parte 4, parte 5,
parte 6

Não sei se se passaram horas, ou dias, ou meses, mas acordo suando, como depois de um pesadelo. A sensação logo se define em urgência e não em medo. Preciso me levantar e sair, o mais rápido possível.
O relógio marca 3 da manhã. Visto uma roupa ao mesmo tempo em que me pergunto se vou encontrar algum lugar aberto. Não tenho muito tempo. Não sei pra quê, não sei de quê, só sei que o tempo é curto.

Saio pela rua e resolvo passar no bar do Carlos, se é que ele vai estar aberto. E para minha surpresa está. Entro esbaforido, falando coisas nas quais não vejo nenhum sentido:

- Seu Carlos, está tarde, onde eu devo ir?
- Oi Augusto, você tem que ir onde você tem que ir.

Estranhamente eu sei exatamente onde isso fica.

Subo a Rebouças. Desço o boulevard Matarazzo, entro na Fernando de Albuquerque e na esquina da Augusta, onde até outro dia existiam ruínas, está um bar novo. Um toldo verde, mesas na calçada e uma placa onde se lê Ibotirama 2077. Tem uma mesa na calçada, vazia. Me sento.

Um garçom sorridente me pergunta o que vou querer. Peço cerveja e cachaça. Só então percebo algo vibrando no meu pulso. Na correria para me vestir coloquei meu data-watch. Está em modo player. Estendo os fones e os ponho no ouvido. O nome da música é Lay me Low, do Nick Cave. música que meu avô chamava de "descrição da morte perfeita".
"They'll bang a big old gong (Lay me low)
The motorcade will be ten miles long
The world will join together for a farewell song
When they put me down below
They'll sound a fluegelhorn (Lay me low)
And the sea will rage, and the sky will storm
All man and beast will mourn
When I go"

Olho em volta. Pessoas rindo. Falando. Bebendo. E na mesa ao lado uma garota sozinha. Usava um laço amarelo na cabeça. Nada nos pulsos, e um lápis nas mãos, que usava para desenhar algo no guardanapo. Levantou a cabeça e olhou para mim, sorrindo:

- Espero que não se importe, mas estou fazendo um desenho seu - disse.
- Não, não me importo não...quer dizer, se eu puder ver o desenho. - respondi alguns segundos depois.
- Claro. Vem! - apontou a cadeira ao seu lado.

Me levantei e sentei ao seu lado. Tudo levava muito tempo. Muito mais do que consigo dizer agora. Vi as pessoas nas mesas em volta. Ouvi os bipes dos seus aparelhos e as risadas das suas bocas. Vi carros zunindo nas ruas. Ouvi os primeiros pássaros cantando. E vi, dentro do bar, um senhor de barba branca e sem bigode, grisalho, com uns olhos muito negros e pequenos olhando pra mim e sorrindo. Olhei para aquela garota e perguntei seu nome.

- Núbia, minha mãe quis para mim o nome da minha avó.

Por muito tempo não soube mais o que dizer a respeito disso. Núbia, a avó, tinha sido amiga do meu avô. E por conseqüência, frequentado os mesmos lugares. Núbia, a neta, está aqui ao meu lado revisando meu texto, atestando a necessidade de vivermos a nossa própria história.

A existência, percebo agora, é uma dádiva única, exclusiva, irrepetível. Mas às vezes uma série de histórias se juntam, se sintetizam para formar uma nova história. E é tudo o que eu quero dizer a respeito agora.