domingo, maio 28, 2006

Virada Cultural

Foi assim:

- Vamos Rê, acho que não ir é entregar a cidade. Não podemos entregar a cidade pro medo.

E fomos. E nos espantamos com a quantidade de pessoas. É louvável a iniciativa de ocupar o Centro, tão pouco conhecido da maioria dos moradores de SP, com festa, manifestações culturais as mais diversas. Enriquece o povo e enriquece a cidade. Foi bom ver tanta gente pensando do mesmo jeito.

Começamos com o Cordel do Fogo Encantado, na Praça da Sé. Chacoalhamos um pouco e a fome bateu:

- Vamos ali comer uma coxinha? – propôs a Rê, ao que eu, um imodesto especialista no assunto (ver texto abaixo) assenti. O “ali” se chamava Jubileu. Jubileu Lanches. Ficava numa das esquinas da Praça.


Existem circunstâncias em que o ser humano adentra recintos sem reparar em detalhes que normalmente seriam fator preponderante para a decisão sábia de virar as costas e ir embora. Neste caso, a circunstância era a possibilidade de todos os outros lugares do centro estarem superlotados. Sentamos e fizemos o pedido. Duas coxinhas e uma cervejinha – minha religião só permite coxinha acompanhada de cerveja.

O momento da espera é o momento de cair em si, já passada a fase da barbárie na busca do espaço vital, e começar a observar onde se entrou. Nas mesas ao lado, homens balançavam ao som de Amado Batista, olhos vermelhos, mentes entorpecidas. Dois dançavam em pé. Uma mulher cambaleava e quase caiu na nossa mesa, procurando pela sua bolsa. Alguns nos lançavam aquele olhar de filmes antigos de zumbi que os moradores locais davam aos forasteiros dentro do único bar da cidade “Vá embora, você não pertence a esse lugar”. A Rê quis ir ao banheiro, que estava com placa de “quebrado”:

- Só pra enganar – disse o garçom que trazia a cerveja e entregou a chave pra Rê. Depois dela entrar, dezenas de pessoas se amontoaram na porta como moscas no mel – desculpem a metáfora tosca, a situação pedia.

Chegaram os quitutes que eu, experiente, comi sem olhar, em duas mordidas. Renata mordeu e observou longamente, depois sentenciou:

- Lê, tem umas coisas pretas...
- É da coxa do frango, come e não olha – o homem nessas horas tem que mostrar segurança, firmeza.

Pagamos a conta e íamos saindo quando nossa cunhada ligou perguntando onde estávamos, Renata passava as instruções enquanto estávamos na porta. Duas donas no balcão acompanhavam o Amado Batista, empolgadíssimas:

- Soooool Vermeeeeelhoooo! Soooool Vermeeeeelhoooo!

Luxo...

quarta-feira, maio 24, 2006

coxinha

Muito se pode dizer de um bar experimentando sua (do bar) coxinha (salgadinho).
Não é? A cerveja não muda - apesar de existirem bêbados profissionais que juram que a Brahma de determinados lugares é mais saborosa do que em outros, dados os devidos descontos de temperatura e pressão. O atendimento de um boteco raramente varia mais do que o bom/mau humor do garçom. Preços são praticamente tabelados. O que diferencia mesmo o bar é a coxinha.

Repare bem na próxima coxinha que você pedir. Começe analisando o exterior: boas coxinhas tem uma camada uniforme de farinha de rôsca envolvendo-as e não vêm pingando óleo - não acreditem em quem diz que coxinha boa mesmo é a que pinga óleo, ele já passou da décima-quinta cerveja. Coxinha que vêm em pé também denota excesso de óleo e muito tempo parada.

A primeira mordida é assunto subjetivo. Existe a corrente dos começo-por-baixo e a dos começo-por-cima, particularmente estou com o primeiro grupo; gosto de encarar logo o desafio deixando o a massa para o fim, massa é fichinha. Dessa forma também, tenho logo um vislumbre do que me espera, se a redenção da minha fome ou se a tortura interminável de um acepipe indigesto.

A coloração vai do branco anêmico ao vermelho urucum (cor essa dada por temperos de uso exclusivo das Forças Armadas), prefira sempre o meio termo, como diria o Dalai Lama. Muito branco=sem gosto, muito vermelho=suspeito, para me fazer bem claro.

O interior pode reservar ainda algumas surpresas que, para os novatos da arte, só se revelarão após uma ou duas mastigadas. Ocorre que devido à volatilidade do mercado de galináceos, determinados estabelecimentos adeptos de excessivo zelo financeiro, concluíram que o recheio deve conter não peito, mas partes menos nobres da ave. Em dado momento o cuidado beira o descaso, deixando passar em exames de material que julgo de pouco ou nenhum rigor higiênico, o que os antigos chamavam carinhosamente de "gelatina" - pergunte ao vovô. Em casos extremos, mínimos pedaços da ossatura animal sobrevivem intactos ao liquidificador, indo parar exatamente naquela obturação que você devia ter ido consertar e não foi.

Em casos extremos como os citados acima, adote a postura firme e decidida do suicida: coma e não olhe. E se sobreviver, não volte a esse bar.



terça-feira, maio 02, 2006

Botequeiros do futuro

Que será dos botequeiros do futuro? Tenho medo! Foi-se o tempo de acompanhar o pai e o tio ao bar antes do almoço de domingo e acompanhar a cerveja deles com um guaraná caçulinha. Foi-se o tempo de ir ao bar do Seu Manoel comprar cigarro para o pai e assistir àquele festival de risadas, brigas por causa do futebol, de mulher, de política.

Bar pra mim sempre foi isso: lugar de confraternização, de idéia, de sonhos variados. A idéia cresceu comigo até que teve o dia em que chamei meu pai para tomar a primeira cerveja com ele. Foi meu aniversário de 18 anos e preciso confessar que não foi minha primeira cerveja. Mas teve um gosto bom, de tradição passada adiante, de rito de passagem.

Não vejo mais tantos filhos acompanhando seus pais naquela "passadinha pra dizer um oi e logo vou pra casa tá meu bem?", "Você vai é encher a cara!...etc". Na verdade não vejo mais muitos filhos acompanhando pais pra lugar nenhum. De tão rara a cena chego a ficar enternecido vendo um garoto levado pela mão por um pai, só os dois. Já posso ver um fenômeno iniciado faz pouco se alastrando pelos anos: o bar sendo só mais um lugar. Lugar físico, igual a uma padaria, uma farmácia, um lava-rápido destituído de personalidade, esta criada pelos seus frequentadores mais assíduos e zelosos. Bar está virando lugar de passagem. Bar está virando nome feio. "Vamos ao bar?" pode soar ofensa: "Tá me chamando de cachaceira?" - aliás talvez esteja aí a razão de tanto serviço diferenciado em determinados "bares", entre aspas, pra diferenciar. Certos "bares" hoje tem pratos diferenciados criados exclusivamente pelo chef buscando uma síntese entre o frescor da cozinha brasileira e a sofisticação da haute-cuisine, saca? Tem garçom de bar hoje que não sabe fazer Maria-Mole nem Bombeirinho.

Experimentasse o cidadão de 20, 30 anos atrás entrar num bar e pedir um filé à Osvaldo Aranha para ver a interrogação na cara do balconista e receber em resposta um "Só tem misto-quente, ou bauru, ou coxinha"; aliás, até os salgadinhos ficaram frescos: coxinha cremosa, que que é isso meu Deus?

Que será desses meninos que não conseguem dizer bar sem ruborizar ou correr pra lavar a boca com sabão? Que fiquem com suas frescuras. Eu quero é cerveja e coxinha, com a pimenta aquela, que matou o guarda.