terça-feira, março 27, 2007

Mendigos

Os mendigos olhavam a televisão.
Na calçada do bar, risos e copos quebrando. Os mendigos sentados olhavam a televisão.
Dentro do bar algumas cadeiras erguidas para cima das mesas; meia noite gente, hora de fechar. Os mendigos sentados na calçada olhando a televisão. Os olhos mareados, translúcidos, vazios, zumbis... olhando a televisão.
Pernas cruzadas espremendo as barrigas vazias daqueles mendigos que ninguém via, e que olhavam a televisão.
A televisão que estava fora do ar.

sexta-feira, março 09, 2007

Zingg!...Pow!....Crás!

Nessa sexta feira sonolenta, onde tudo o que me vem na cabeça é sair daqui correndo para o bar mais próximo e tirar o sapato aos berros de "acudam! uma cerveja pelamordedeus!!", não sei por que me ocorreu o nome do falecido fotógrafo David Drew Zingg. Americano de New Jersey, "tio" Dave mudou-se de mala e cuia para o Brasil após conhecer e se apaixonar pela bossa nova - a mulher brasileira ele viria a conhecer depois.

Morou no RJ e depois se mudou para SP, onde colaborou (nos últimos anos de vida) com a Folha de SP. Lembro de lê-lo na adolescência e de nele encontrar um outro herói inspirador. Seus textos transbordavam bom humor e crítica ácida. Conversava com o leitor como quem está no bar, chamando-o de Joãozinho. Chamava os EUA de gringolândia, o RS de gaucholândia...e por aí ia...desfiando seu rosário de causos.

Garimpei um pouquinho e achei um texto absurdamente emocionante e emocionado. Uma declaração de amor deslavada de um gringo por um país estrangeiro. O acaso tem dessas coisas: nesses tempos em que nossa auto-estima como brasileiros anda tão por baixo, onde brigamos tanto por uma razão de acreditar que tem luz no fim do tunel vem mr. Zingg, lá de onde descansa, me arrancar umas duas ou três lágrimas.
Tio Dave, puxa uma cadeira e usa da palavra, por favor. A cerveja já vem vindo.

"Não sei como aconteceu, mas de repente o Brasil se transformou para mim no país mais cheio de vida que conheci. Não era o pitoresco exagerado do folheto turístico. Não era o superverdadeiro e superglorioso aspecto físico: Corcovado e as praias, Iguaçu e o Amazonas. Não eram os cinematográficos desfiles de Carnaval. Não era Brasília, não era São Paulo, não era todo o poder industrial das fábricas de automóveis; ou a televisão, a Kibon, Nycron, Peg-Pag. Era o efeito arrebatador de cada profundo e emocionante contato com um brasileiro, depois outro, depois outro, depois dez e depois centenas. Era a experiência de ser tratado como um ser humano por outros sêres humanos - o mais aberto e complicado, sereno e perturbado, alegre e triste grupo de sêres humanos com quem já convivi. Seja qual fôr a minha impressão a respeito do brasileiro, êle me parecerá, em primeiro lugar, aberto. E eu tenho sido ajudado, odiado, apoiado, enganado, admirado, detestado e amado.

Cheguei à conclusão de que existe algo simples, mas muito forte - um tipo de cola humana indestrutível - que junta numa idéia só êste grande País. Ao olhar para um brasileiro, sinto que êle tem a absoluta certeza do que é. E acredito que essa certeza vem do fato dele ter sido muito amado, desde muito cedo e durante muito tempo. Para mim o Brasil é um país habitado por um grande número de pessoas que têm sido muito amadas e que têm capacidade de transmitir esse amor. Aqui se encontra o amor à vida que impede o derramamaento de sangue, que mantém as pessoas vivas, no verdadeiro sentido da palavra. Commo estrangeiro, vejo sempre o carinho enchendo as ruas.

O que pode o visitante dizer a respeito da mulher brasileira, que Vinícius de Moraes já não tenha dito com mais amor e mais profundidade? Que observações pode fazer o forasteiro a respeito dos olhos profundos da morena carioca, que inúmeros homens já não tenham feito? Como pode um estrangeiro descrever melhor suas qualidades que uma canção de Tom Jobim? A mulher brasileira tem lugar especial na geografia feminina do mundo. Sua beleza física, para um fotógrafo, é muito simples de ser descrita. Seu andar, seu gôsto intuitivo para se vestir, seus olhos, seus cabelos - tôdas essas coisas a colocam entre as mais belas. Mas suas qualidades interiores - sua maneira de se dar completamente e sem reservas quando ama - é que são as coisas mais difíceis de medir e descrever. Como explicar que uma prostituta brasileira seja tão carinhosa? Como transmitir o sentimento indescritível de ver a alma de alguém através de seus olhos? Como medir a profundidade, a amarga profundidade, do amor por uma mulher brasileira que perdemos?"