quarta-feira, março 28, 2012

Dois humoristas a menos em menos de uma semana

O Brasil está passando por um risocídio. Primeiro, Chico, agora é Millor Fernandes quem bate as botas. As duas mortes praticamente ao mesmo tempo são simbólicas: o humor está indo embora do país.

E o que está ficando é um arremedo de comédia.

Chute uma pedra na calçada irão aparecer três "humoristas de stand-up".

Ligue a TV no horário nobre e você verá pelo menos um programa de "jornalismo humorístico".

Porque é mais fácil fazer rir com obviedades chulas. É mais engraçado apontar o dedo pros defeitos de quem não pode (ou não tem capacidade de) responder à altura. Se der errado, faça um mea culpa, chore umas lágrimas de arrependimento, e volte ao ar em outro programa usando a mesma fórmula.

Millôr foi um dos primeiros caras que me fez rir e querer fazer piada. Também foi o único que conseguiu me fazer ler uma peça de teatro (só uma - Computa, computador, computa - que eu não sou de ferro...). Não conseguiu me fazer ler Shakespeare, mas isso é outra história.

Adolescente, aprendi com ele que humor pode ser elegante, fino e, ao mesmo tempo, certeiro. Nas mãos de um cara hábil, o humor pode ser um tapa com luva de pelica na cara da sociedade, uma bola por baixo das pernas do mais atento censor, do mais ferrenho crítico.

Sem o Millôr a gente fica assim, bobo.

domingo, março 25, 2012

Original ou dublado?

Domingão. Dia de reclamar.

Faz tempo que eu me irrito com a redução de programas com áudio original e legendas na TV por assinatura. Gênios da análise de mercado dão o fato como irreversível, graças à entrada da classe C no grupo de assinantes desse tipo de serviço. Concordo em termos. Mas aplaudo e defendo o direito que todos têm ao lazer.

Agora, usar isso pra justificar a retirada dos programas com áudio original da grade de programação merece duas explicações simples:


1) Preguiça

Todo mundo sabe que existem três (não dois) canais de áudio e um de legenda disponíveis para todos os canais de qualquer operadora. Querer me convencer de que usar a tecnologia é uma questão complexa - pior, inútil - é me chamar de otário.

2) Tendência "sadomercadológica"

É prática comum das teles (TVs por assinatura e operadoras de celular) correr atrás de aumentar sua fatia de participação no mercado. Para quem não é assinante, todas as vantagens. Para quem é, bom...ele já é assinante, não é?


Até aqui estamos na seara dos direitos do consumidor. Me sinto lesado e pretendo levar isso aos canais competentes. Debate entre consumidor e prestadora de serviços, e ponto.

O problema é quando um veículo de comunicação tenta me fazer engolir a "novidade" calado.

Hoje, no Estadão, uma distinta jornalista (blogueira? jornalista? sei lá) tenta me convencer de que "essa história de que o aumento de oferta de programas dublados na TV por assinatura  foi causada pelo aumento do número de assinantes da classe C é balela", na verdade isso seria uma tendência de mercado. Tenta me convencer de que eu  - que prefiro programas com áudio original e legendas - sou minoria. Faz isso no melhor estilo "jornalismo de release", aquelas matérias que depois de lidas fazem você jurar que foram escritas pelo departamento de marketing de uma empresa.

A empresa que escreveu essa matéria específica foi a a TNT, canal de TV que, segundo a matéria, oferece programas dublados há mais de 20 anos (só esqueceram de aferir a audiência da TNT, mas beleza).

Na matéria, somos apresentados a uma pesquisa encomendada pela mesma TNT que mostra que "apenas a metade dos consumidores prefere programas com áudio original a dublados". Me corrijam se eu estiver errado, mas metade de qualquer número não é exatamente desprezível, estatisticamente falando.

Também tenta nos convencer de que as pessoas, na verdade, têm vergonha de admitir que preferem ver programas dublados ao invés de legendados. A homilia vai além: diz que as TVs de tubo - que ainda são maioria (!!!) - tornam a experiência de ler legendas desconfortável.

Cita alguns exemplos de canais que obtiveram sucesso ao mostrar apenas programas dublados como o Telecine Pipoca. Vejam vocês: o Telecine Pipoca é um dos poucos canais que passam, sim, programas dublados, mas oferecem a opção de assistir à programação com áudio original e legendas, mas a assessora de imprensa desconhece. Não sabe. Não viu.

Cerejinha do bolo, pra você que prefere ver o programa em áudio original, seja essa áudio qual for:

"quem duvida do interesse da massa pelo bom português "falado", convém conferir a tabela ao lado: dos 16 canais mais vistos na TV paga brasileira em 2011, 18 dispensam legendas"

Eu me interesso por jornalismo bem feito...

sexta-feira, março 23, 2012

Velho Chico

Quando eu era criança era farta a oferta de programas humorísticos na TV - Humorísticos, com H maiúsculo, que é uma classificação que só pode existir nesses tempos de humor insípido, onde se argumenta que não dá para fazer graça porque não se pode falar palavrão ou ofender ninguém.

Todos os humorísticos daqueles tempos tinham à frente um grande personagem catalisador. Os maiores: Jô Soares, Renato Aragão e Chico Anysio, que pra mim ainda é Anísio. No formato vigente, os programas giravam em torno dos personagens criados por esses mestres do humor. Algo diferente da escola estadunidense ou da escola britânica, em que grupos de humoristas dividiam personagens e piadas em esquetes elaboradas. Por aqui, as piadas gravitavam em torno de um gênio, o resto do elenco era escada para o punchline, o clímax, interpretado por esse gênio.

Tempos atrás a Globo botou no mercado três caixas de DVD com os "melhores momentos" desses três mestres - melhores na opinião de algum guru mercadológico anônimo da Globo Marcas, o que vale outra discussão. Tentaram resumir em dois ou três discos tudo o que foi feito pelos Trapalhões, pelo Jô Soares com Viva e Veja o Gordo e Chico em Chico City e Chico Total. Comprei os três.

Foi com surpresa que vi que, dos três, o humor que tinha envelhecido melhor era o de Chico Anísio.

Porque na minha memória, o humor "mais engraçado" era o do Jô Soares - culto, salpicado de críticas sociais e políticas. O do Chico era popular, beirando o chulo. O dos Trapalhões, sem nenhum demérito, era infantil.

O saldo da revisão foi o seguinte:

Os programas do Jô Soares eram caricaturais. Jô e seus redatores criavam pastiches da política e, em menor escala, da sociedade da época. As piadas alternavam-se entre extremamente populares e extremamente pedantes. Envelheceram muito mal.

Os Trapalhões não eram o Renato Aragão. Longe disso, como provam as constantes tentativas de ressurreição do formato pelo humorista. O grupo era Mussum, Zacarias e, em menor escala, Dedé - esse sim, o maior escada da história da comédia brasileira. As piadas em grupo buscavam inspiração no humor físico/circense. Quando dada a chance, Mussum e Zacarias roubavam a cena com personagens que eram puro espelho da realidade. Mussum era o mestre. Didi era uma cópia mal feita de Charles Chaplin.

Chico era o único humorista dessa geração que realmente trazia algo novo. Fazia crítica social ácida através das dezenas de personagens que criou sem ficar datado. Coalhada era e é o perfeito resumo do boleiro falido. Pantaleão - além de elo de ligação com o realismo fantástico latino americano, coisa que nem o pseudo intelectual Jô conseguiu fazer - é um "coroné" brasileiríssimo. Bozó e Adalberto Roberto formam o amálgama do eterno global (sou da Globo, sou bobo, mas tou na moda).

Ele conseguiu trazer para a TV um humor verdadeiramente regional, verdadeiramente brasileiro.

Também conseguiu temperar com pimenta e coentro o stand-up, gênero americano de humor que virou uma praga por essas bandas.

O stand-up em si é simples: um sujeito ou sujeita em cima do palco apontando para a plateia os fatos ridículos do seu dia-a-dia. Não é um vomitório de obviedades como "o trânsito de SP é uma merda", tão comuns no repertório brazuca. A graça está em apontar o óbvio com situações cotidianas, ser sutil, respeitar a inteligência da plateia. Mas divago.

Chico foi além ao introduzir a crônica - gênero muito nosso - no palco. Se apropriou das técnicas de stand-up (timing, punchline) e as adaptou para contar histórias genuinamente nossas.

E a grande perda que sinto hoje é essa: morreu um mestre que não deixou discípulos. Tá todo mundo fazendo stand-up desvirtuado, quando tudo o que os palcos precisavam era de alguém contando histórias, causos, piadas.

Chico, veja daí onde você está agora se não dá pra mandar um Professor Raimundo pra ensinar pra esses meninos como se faz rir do óbvio sem ser óbvio e besta.

E chega, que tou ficando chato. Fiquem com o Chico, fazendo o que ele fazia melhor.







O Bebê Gigante

Crônica originalmente publicada em algum lugar, lá em 2005. Pelo menos eu acho que foi...


1


O pai suava no corredor da maternidade. A gravidez da Doralice tinha sido difícil.  Desde os três meses a barriga da esposa aumentava a olhos vistos, a cada dia que passava. Não era normal... Não era normal.

- Sr. Ademir?

- Sou eu! – ele gritou. O cigarro apagado e amassado caiu da boca.

- Parabéns, sr. Ademir. O senhor é pai de um...bem... – coçou a cabeça. Como se dá uma notícia assim?

- Um quê, doutor?! Fale homem!

- Assim que o senhor largar a minha gola, obrigado. Olhaí, amassou tudo. É um Lacoste, pô.

- Desembucha!

- Sua esposa está em recuperação, foi um parto complicado. O bebê está bem, exceto...

- Poupe-me da linguagem técnica!

- Ele nasceu com 95 centímetros e 9 quilos.

2

Ademir acordou na cama, ao lado da mulher. Ela estava descabelada. A língua pendia para fora. Os olhos semicerrados.

- Doralice... – chamou Ademir, com um fiapo de voz. Doralice, minha filha...você está bem?

Doralice arregalou os olhos.

- Eu...eu... – deu um longo suspiro e silenciou.

A cabeça sorridente do médico apareceu na porta.

- Papai, mamãe? Olhem quem chegou!

Entrou no quarto. Trazia o bebê pela mão. Ele caminhava. E emitia um som gutural.

- UUhhhh

Ademir desmaiou de novo. Doralice chorou. Enfermeiras chegaram correndo. O bebê puxava o jaleco do doutor.

- Larga daí, menino! É um Lacoste!

3

Em três meses a família teve que sair do apartamento de dois quartos no centro da cidade para um sobrado no subúrbio. A chegada à casa nova causou comoção na vizinhança.

- Jorge! Ô Jorge! Vem cá ver os vizinhos novos!

- Será que ele torce pro Corinthians?

- O que é aquilo ali saindo do carro?...  SANTA MÃE DE DEUS!

- UUUUUUh!

O menino estava com dois metros e meio e mais de cento e vinte quilos. Em todo o resto, era um bebê normal.

- Uuuuuuuh!

- Sua vez de dar a mamadeira, Ademir.

- Saco...

A vida ia nessas e os pais acabaram se acostumando com aquele serzinho de três metros de altura. O problema eram as contas. Além de comer proporcionalmente ao tamanho, o bebê precisava de fraldas feitas sob medida pela Johnson & Johnson. Quilos de Hipoglós eram gastos por semana.

Ademir teve que arrumar outro emprego, de segurança noturno em um supermercado. Entrava na repartição às 9hs, saía às 18hs, passava em casa, tomava banho e saia às 20hs, para voltar para casa apenas às 5 da manhã. Estava ficando careca. Os colegas zombavam dele.

Também não era fácil para Doralice, que passava o dia entre o fogão, onde esquentava a tina de leite, e a lavadora industrial que eles tiveram que mandar instalar para lavar as roupas do bebê.

À noite, durante o pouco tempo que tinham para interagir, trocavam suspiros.

- UUUUUUUUH!

- Sua vez...

- Saco...

4

Um dia o bebê sentou no gato da vizinha. A mãe ralhou com ele e ele chorou muito.

- UUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUUHHHHHHHHHH!

Sentiu-se rejeitado. Saiu de casa, derrubando a porta e chamando a atenção dos vizinhos.

- Marta, que que é aquilo, mulher?!?!??!

- AAAH!

O bebê andava pela rua, segurando o gato morto pelo rabo.

- UUUH!

A notícia se espalhou, chamando a atenção da imprensa. Começou na internet:

“Bebê de 10 metros de altura vaga pela cidade” (Folha de S. Paulo)

“Neném do inferno apavora perifa” (Meia Hora)

Logo, helicópteros das redes de rádio e TV e da polícia estavam no encalço do bebê gigante.

- É verdade, Sandra. Um bebê de mais de 20 metros de altura está a caminho do centro da cidade! Veja as imagens.

- Nossa, Evaristo. O que é aquilo na mão dele? É um gato morto?

- É verdade, Sandra.

- É um absurdo. A pergunta que a população faz é: onde estão as autoridades?

Doralice, que a essa altura estava desesperada, vê a notícia na TV e desmaia.

A comoção é geral. O governador pede a ajuda do delegado Paranhos, especialista em rebeliões da Fundação Casa. A coletiva de imprensa foi disputada a tapa.

- O elemento neném se evadiu para o centro e nós já estamos mobilizando unidades para cercá-lo. Temos total apoio das forças armadas para acabar com essa ameaça. Pra mim, neném bom, é neném na creche!

5

- UUUhhhh

O bebê seguia pela cidade, deixando atrás de si um rastro de destruição. Devorara todo o estoque de bolos de três padarias e deixara duas franquias do McDonalds à míngua. Num cruzamento congestionado, resolveu brincar de Hot Wheels e causou um engavetamento. O corpo do gato, totalmente estropiado, foi usado pelo pequeno monstro como motorista de uma betoneira. Toneladas de cimento ficaram espalhadas pela via.

No centro de operações, o comandante da força especial, Delegado Paranhos, discutia a estratégia de captura da ameaça infantil com militares das três armas.

- Senhores. Alguma ideia?

- Vamos atraí-lo com algodão-doce e prende-lo. Propôs um.

- Não. Levaria dias para juntar todo o material necessário. Respondeu Paranhos, depois de curta reflexão.

- Que tal construir uma prisão com Lego? 

- Hm...não. Precisamos de algo épico. Grandioso. Algo que seja lembrado por...já sei! Vamos precisar de todas as bandas marciais que vocês puderem reunir. Também precisamos de todos os palhaços disponíveis.

- Mas Paranhos...o que...?

- Não discutam! Mexam-se!

6

O bebê estava tomando um barril de coca-cola quando os veículos militares começaram a se aproximar. Jipes, tanques, urutus. Acima, helicópteros militares adaptados com imensos alto-falantes. No primeiro deles, o Delegado Paranhos advertia pelo megafone:

- Atenção, neném! Atenção, neném! Neném fofinho! Neném naná! Olhaí neném, cuidado, senão a Cuca vai pegar!

Os pais do bebê, os vizinhos, todo o país acompanhava apreensivo pela TV:

- É uma operação ousada, Evaristo. O delegado Paranhos pode sair dessa como herói ou como um completo imbecil.

- É verdade, Sandra.

Paranhos deu o sinal. No solo, um coro de mais de mil palhaços cantava Nana Nenê, a altos brados, acompanhado de uma orquestra gigantesca. O som era reproduzido pelos alto-falantes instalados no helicóptero.

O suor escorria pela testa de Paranhos. Ademir, sem cabelos, com a camisa furada, olhava Doralice, desgrenhada, com o avental sujo de ovo. Evaristo segurou a mão de Sandra, que tirou rápido fazendo cara de nojo.

Até que o bebê bocejou. Levantou com agilidade neonatal e começou a anda na direção de casa. Foi escoltado pelos veículos militares, pela orquestra e pelos palhaços.

Ao chegar em casa foi recebido pelos pais. Doralice gritava: “meu filho! Meu filho!”. O bebê jogou longe o que sobrou do gato. Se espreguiçou e deitou em cima da casa, demolindo-a. Ajeitou um pouco de entulho, fazendo um travesseiro. E dormiu feliz.