quinta-feira, novembro 30, 2006

04 de junho de 2077

leia antes: parte 1, parte 2, parte 3, parte 4 e parte 5

Dormi boa parte do dia e acordei com o gosto amargo da ressaca na boca. Tomei um comprimido que rapidamente eliminou o mal estar. Os boêmios do passado invejariam essa tecnologia. Ou ririam...o que seria da boêmia sem a ressaca.
Meu pai trabalhava no escritório; estava de costas para a porta mas me ouviu passando:
- Tudo bem, filho?
- Sim...um pouco frustrado, mas bem.
- Quer falar sobre isso?
- Acho que não...Não.
- Tudo bem então.

Me afasto.

O que aconteceu ontem? Por que não senti? Fiz tudo certo! Estava praticamente nu, de peito aberto, e ainda assim não consegui.

O dia passou com essas maquinações. Amigos me ligaram. É sexta-feira e eles vão a uma festa. Me sinto tentado a ir. Desisto. Não estou vendo graça em deixar as máquinas decidirem sobre quem eu devo beijar ou não. Talvez eu saia hoje. Talvez faça uma ronda nos bares aqui perto.
Sem tanto álcool dessa vez. Sim, é isso.

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São 19h30. Estou num velho boteco a algumas quadras de casa.
Peço uma cerveja e não deixo de notar um velho sentado sozinho. Ele é calvo, tem uma barba muito branca, mal aparada e falhada. Puxa um cigarro. Faz muito tempo que não vejo alguém fumando ainda mais num lugar público, o que me faz pensar que talvez ele seja o dono do bar ou amigo do dono. Na sua frente, um copo de cerveja e outro com um líquido de um azul meio transparente que não consigo identificar

Ele olha pra mim e sorri. Vou até ele.

- Boa noite, posso me sentar com o senhor?
- Claro, filho...a casa é sua.
- O senhor é dono do bar?
- Faz 40 anos, e não passou um dia em que eu não tivesse bebido mais do que os clientes, haha! - ele ri e tosse ao mesmo tempo.
- Aceita absinto? - diz oferecendo o copo. Então essa era a bebida.
- É forte?
- Bebidas não se descrevem, filho...se provam. Diga você mesmo.

Tomei um gole grande e tive um acesso de tosse. Não era forte, era muito forte. O velho ria.
- Esse é português, 45 graus...o único que se acha hoje em dia. Quando eu era jovem, com algum esforço, achávamos o húngaro, de 97 graus.
- Mas isso era quase álcool puro!
- Bom jeito de matar uns neurônios, não?
Sorrio, meio sem graça. A garganta arde.
- Então, qual seu nome, filho? - ele não usava nenhuma identificação, nem leitor...daí a pergunta estranha.
- Augusto...e o do senhor?
- Carlos... - disse estendendo a mão para um cumprimento e abrindo a boca para um sorriso - O que o traz ao meu modesto bar?
- Não sei bem seu Carlos...tive vontade de sair...entrar no primeiro bar que encontrasse.
- Conheço bem essa vontade, mas você não tem cara de quem faz isso constantemente.
- Na verdade não. São esses escritos do meu avô que encontrei outro dia. Ele fazia isso e eu tive vontade de experimentar.
- E que tal?
- Bem...não encontrei ainda exatamente o que eu queria.
- E o que você quer?
- Sentir o que ele sentia.
- Mas isso é impossível...
- Estou começando a me convencer disso.
- Qual a idade do seu avô?
- Ele faria 100 anos no dia 22.
- Falecido...sinto muito. Gostava dele?
- Sim, muito. Ele me mostrou muita coisa. Me levou a muitos lugares. Me contou muitas histórias.
- A história de um ser humano é feita também pelo tempo em que ele vive, não só pelas situações por que ele passa, você entende isso Augusto?
- Um pouco seu Carlos.
- Veja, o mundo hoje permite muito pouco do que nós vivemos há 50, 60 anos atrás. As relações iniciavam e terminavam por nossa própria vontade. Ousávamos ir a lugares desconhecidos, que não apareciam nos guias. A tecnologia matou um pouco do nosso espírito aventureiro. Da nossa inconseqüência mesmo. Ela traz benefícios, mas tira um pouquinho da graça que talvez seja o que você está procurando. Estou falando demais, mania de velho...desculpe.
- Não seu Carlos, por favor...diga mais.
- Augusto, o homem tem que viver e encarar os desafios do seu tempo. O passado deve ser reverenciado, mas já não pode ser vivido. O futuro é conseqüência. Agora, que tal uma porçãozinha?

Sorri e aceitei a gentileza. Fiquei horas ouvindo aquele homem e suas histórias.

- Seu Carlos, já está tarde, tenho que ir.
- Augusto, sinta-se à vontade para vir quando quiser.

Fui para casa.

Sentado na cama, fiquei olhando para o data-watch. Olhei para os meus cubos empilhados na mesa. "O homem tem que viver o seu tempo". Talvez ele tenha razão. Talvez eu deva parar com essa busca inútil.

Levo as mãos ao rosto e me deito. Amanhã é outro dia.

quinta-feira, novembro 23, 2006

03/06/2077c - o bar errado

leia antes: parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4.


Fico parado na porta do BH, o primeiro bar da lista, e observo. O ambiente é velho. Os garçons idem. Todos conhecidos de cada um que chega. E os que chegam são, aparentemente, frequentadores dos cinemas da região, novos e antigos (os cinemas e os frequentadores).
Um velho televisor de plasma, já saturado pelas imagens em alta definição, exibe um programa de auditório - "certas coisas não mudam, uma delas é a TV aberta" dizia meu avô. Escolhi uma mesa e me sentei à espera de um garçom, que veio com um cardápio.

- Uma cerveja por favor.
- Sinto muito, mas não servimos bebidas alcoólicas.

A frase ligou algo em mim. Lembrei de meu avô contando histórias sobre esse bar; como em determinado momento houve uma reforma e após ela reduziu-se drasticamente o cardápio de cervejas e de como houve um pequeno êxodo dos frequentadores mais antigos para outro bar. O Ibotirama, para ser mais exato.

Agradeci e me retirei.

A tarde cai enquanto chego ao Marajá, segundo bar da lista. Sentei e fiz o mesmo pedido. Fico feliz em ver o copo suado e o colarinho escorrendo na mesa. Algo está para acontecer.

Nada acontece. Sorvo o líquido rapidamente. Sinto os neurônios sendo consumidos. Escrever fica fácil mas não tenho nada, nenhum assunto. Estou aqui, sentado num bar, tomando cerveja. Que mais?

Em volta, pessoas sozinhas. Uma por mesa, todas olhando para seus pulsos consultando sabe-se lá que informação. Um sorri, uma mulher contrai os lábios e aperta os punhos, outro ainda digita insistentemente no FOLED do datawatch. Cada um no seu mundo, e nenhum no mundo do outro, exceto por aquela mesa onde um casal de desconhecidos acaba de receber um bipe de reconhecimento dizendo que poderiam em breve se casar e ter filhos. Pedi outra cerveja mais forte e mais escura e uma dose de cachaça.

Descarreguei meus créditos para pagar a conta usando um velho cartão que o garçom olhou com desconfiança. Estava escuro e não tinha pensado num lugar onde passar a noite. Bêbado que estava, resolvi vagar. Ir até o centro da cidade.

Poucos lugares tinham mudado tão pouco. Não fosse a excessiva quantidade de câmeras que garantiriam a segurança dos frequentadores da região pouco depois de 2010, substituídas e tornadas obsoletas com a implantação dos RFID´s como meio universal de identificação por volta de 2020, o centro continua mais ou menos o mesmo desde quando meu avô caminhava por aqui.

Desci até o Vale do Anhangabaú. Sentei num banco e adormeci.

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Acordei com a luz forte no rosto. As vozes pareciam saídas de um sonho que estava tendo e pouco a pouco se tornavam claras:
- Garoto! Ei garoto! Acorde! - um policial me sacudia.
- ...
- O quê está fazendo aqui a essa hora da madrugada? Você mora na rua?
- Não, eu...
- Por favor, passe seu...ei! Cadê seu datawatch?
- Em casa, eu deixei em casa...
- Ficou maluco?! E se te acontece alguma coisa?! Venha conosco, vamos te levar para a central.

Entramos no veículo. O zumbido leve do motor e a sensação de deslizar alguns centímetros acima do chão me fizeram adormecer de novo.

Acordei sentado numa cadeira. Pessoas caminhavam de um lado para o outro. No balcão reconheci meu pai conversando com outro homem.
- Deu trabalho para localizar seu pai garoto...não achamos seu RFID em lugar nenhum. Tivemos que escanear seu rosto.

Eu mantinha meu RFID conectado ao datawatch...hábito comum entre os que não queriam ter os seus implantados no corpo.

Meu pai se aproximou e não disse nada. Fomos para casa.

segunda-feira, novembro 13, 2006

03/06/2077b - Metalosis Maligna

leia antes: parte 1, parte 2 e parte 3

Do outro lado da rua havia um CI (Centro de Inclusão), onde os menos afortunados podiam acessar e gravar seus arquivos no banco de dados mundial - muitas mazelas de um país em desenvolvimento haviam sido sanadas mas a evolução tecnológica cria novas necessidades. Diante da primeira tentativa frustrada, precisava acessar meus arquivos em busca de outros pontos de referência. Atravessei a rua.

Na porta do CI alguns portadores de Metalosis Maligna, síndrome que a partir da metade do século acometeu usuários de implantes sintéticos, discutiam as recentes pesquisas em busca de uma cura e me olharam com desconfiança enquanto eu entrava.

Escolhi uma cabine e aproximei minha íris do leitor para acessar meus arquivos. Do lado de fora, ouço um comentário e risos abafados:
- Com essas roupas e não tem créditos para um implante de comunicação, haha!

Entrei com uma pesquisa semântica:
"leonardo carvalho, bares freqüentados, c. 2010, centro de são paulo e imediações"

O hollodeck me oferece algumas músicas associadas com meu avô para ouvir enquanto espero o resultado, na lista Beatles, Depeche Mode, Ladytron e Massive Attack; precisaria do meu data-watch para ouví-las...pena.

Menos de 30 segundos depois tenho um mapa tridimensional com a minha localização e uma lista de bares por onde ele deixou um rastro de créditos. Dois deles me saltam aos olhos pela data de abertura. Lanches BH - c. 1990 e Restaurante Marajá - c. 1960. Já ouvi esses nomes. E pela data ele deve ter passado por lá muito antes da moeda ser trocada por créditos.

Anotei os nomes no caderno e de repente as risadas do lado de fora emudeceram. Saí, com as pessoas me olhando como se eu não fosse desse planeta.



terça-feira, novembro 07, 2006

São Paulo, 03 de junho de 2077

leia antes a primeira e a segunda parte desse conto


Nunca tinha visto maldade em ninguém, mas foi a primeira coisa que vi nos olhos da primeira pessoa que cruzou meu caminho ao sair do prédio onde moro em Pinheiros. Senti medo e desviei os olhos mas senti que eles ainda me seguiam enquanto eu me misturava às pessoas.

No céu, os satélites - que desde 2029 são visíveis a olho nu - me olham com desconfiança;
o fato de estar entre a multidão completamente desplugado pode ser sido a razão disso.
A sensação é indescritível e me fez esquecer dos olhos, daquela pessoa e dos satélites.

Me sinto perdido e é bom. Não vou para lugar nenhum e vou para todos os lugares. Não sei o que fazer nem sei se a bela mulher com o laço amarelo nos cabelos que passa por mim gosta das mesmas coisas de que eu gosto. Decidi descer a rua Augusta que está sendo remodelada. Haveria de encontrar o que procurava.

Estou sozinho.

Quero gravar isto mas não tenho onde, por isso trouxe o velho caderno e uma caneta.

Vento.
Sol.
Folhas caídas.


É um sacrifício ter de expressar essas coisas sem o complemento das imagens, sons e das minhas próprias sensações gravadas, acostumado que estou com o escaneamento das minhas retinas e das minhas sinapses, mas o exercício é tão intrigante que escrevo e caminho ao mesmo tempo, esbarrando nas pessoas e tropaçando nos burados da calçada sendo refeita. Me pergunto se tempos atrás alguém conseguia fazer isso com mais competência.

A um ponto parei. Um prédio estava sendo demolido na esquina da Fernando de Albuquerque. Uma placa estava jogada no chão junto com o entulho que ia rapidamente sendo recolhido pelos recicladores que o iriam transformar em blocos de construção. Na placa eu li: "Ibotirama". Muito tempo atrás meu avô me trouxe aqui e contou das noites em que vinha a esse lugar. Era um dos pontos onde queria experimentar.

Me afasto, sentindo um pouco de raiva e tristeza. Mais um pedaço dele que vai embora.